quinta-feira, 31 de março de 2011

Medo de escuro

quarta-feira, 30 de março de 2011

Rito de passagem

Vista do lado de fora ela era uma imagem de ficção científica. Aquela cadeira  muito mais do que um objeto de trabalho  era incrível arquitetura em minha imaginação. Ela podia girar , suspender e abaixar quem nela estivesse sentado e eu ficava imaginando que aventuras poderiam ser narradas por aqueles que a usavam. Desejei sentir o que sentiam.
Toda vez que eu tinha que passar em frente à barbearia  de seu Onofre , diminuía o passo como se pudesse vivenciar uma narrativa fantástica que coubesse inteirinha naquela fração de tempo  . Meus olhos captavam apenas a cadeira, tudo o mais era subtraído da cena naquele instante. Ela então passava a ser muito maior do que realmente era e reluzia como talvez nunca tivesse reluzido desde que saíra da fábrica.
Às vezes me surpreendia vendo-a descolar do chão, ascendendo velozmente, rompendo o teto da velha barbearia; um foguete em pleno curso.
 Numa tarde meio chuvosa, escondido entre o poste e o guarda-chuva preto que trazia nas mãos, vi a lâmina aguda preparar-se para iniciar uma lobotomia; os dedos longos do alienígena iam e vinham  zipzapeantes ...
_ Ô menino, estás a sonhar acordado?!
Desfeito o laço que me atava à fantasia pus-me a correr rua abaixo lívido e envergonhado. Comigo iam meus cachinhos loiros que pendiam feito as roupas dos varais: promessa que mãe fizera.
_ Logo você vai para a escola, dizia minha querida mamãe enquanto escovava meus cabelos molhados e que escorriam entre o liso de seus dedos.
_ Vou aprender a ler? Vou aprender a escrever como meu irmão?
_ Sim, vai deixar de ser um menininho, pra ser o meu filho-doutor! Graças à virgem você está saudável!
Aquelas frases soaram na minha cabeça como uma trombeta anunciadora. Tive medo de que rissem dos meus cachos. Não suportaria as chacotas dos colegas e já podia prever as brigas no pátio e os castigos. A tão sonhada escola me causava um bolo no estômago cujos ingredientes eram desejo e dúvida...
O cheiro doce espalhou-se pelo ar já muito cedo e, na casa havia uma movimentação barulhenta; sons metálicos de talheres e sons vítreos das xícaras, canecas e copos.Nada de diferente, era assim todo santo dia e todo dia santo . Com a conversa miúda crescendo conforme a casa ia acordando, não demorou para que eu, o menor da casa ,  me juntasse ao burburinho matutino com hálito fresco de dentes escovados e olhos ainda apertadinhos . Tomei meu café misturado ao leite quente, comi um pãozinho. Como de costume, pouco falei, sequer resmunguei qualquer coisa. De certo modo, eu já previa que algo diferente estava por preencher as horas daquele dia, quem sabe da minha pequena vida inteira...
 Mamãe tomou-me a mão com delicadeza e silêncio apanhou a carteira de couro esgarçado, beijou-me a testa e caminhamos. Nada perguntei, embora minha língua coçasse dentro da boca. Se ela nada falava, também eu nada falaria. Eu podia tudo na vida, menos desapontá-la. Do fundo do meu coração percebi que aquele nosso conjunto de gestos tácitos era uma oração. Eu não podia pecar.
Paramos diante da barbearia. Meu coração batia escancaradamente; morrera o silêncio:
_ Bom dia seu Onofre!
_ Dia!
_ O senhor tá ocupado?
_ Nada! Então vai ser hoje o dia?
_Cumpri o que prometi. Minha dívida com a santa está paga. O menino é seu!
Aquela declaração continha muitas sutilezas e eu podia sentir a navalha percorrendo minha espinha.
Fui erguido pelas mãos cabeludas do velho homem e então acomodado na cadeira mágica, fechei os olhos, engoli o choro e fui celebrado com um tapinha no cocuruto. Meus pés largados ao nada ...
Abri os olhos: a cadeira não voou, nem atravessou o telhado como eu esperava, mas ergueu-se em pequenos solavancos rangentes.   O metal que a abraçava estava desgastado e seu revestimento puído. Respirei fundo e sorvi aquele momento.
As mãos ágeis do barbeiro desferiram o primeiro golpe e eu quase pude ouvir a lamentação do cacho esvoaçante antes que ele se entregasse ao chão.
 Um a um, os inocentes cachos foram-se então. Ergui meus olhos e o espelho me revelou uma figura com a qual eu deveria me acostumar  .
Uma borrifada de água, a tesoura, a navalha e o corte final: a idéia da escola era um bolo digerido.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Cada um no seu cada um


Dia abafado.Desses muitos que têm ocorrido com intensidade e freqüência além, muito além do normal.Tempos de conferência mundial do meio ambiente em Copenhague.
Embora algumas nuvens encobrissem o sol de domingo, a luz se espalhava ora branca, ora acinzentada .No horizonte , as águas da princesinha ondulavam preguiçosamente e sob meus pés areias de castelo.
“Come on , I´m talking to you...”A canção vinha num engrolado ébrio por detrás da minha cadeira e passou aos tropeços rente a cangas , esteiras, caixas de isopor e guarda-sóis em direção ao mar.
Opa!Ameaçou um tombo, como se uma ventania inesperada lhe abalasse as pernas.Minutos depois, quando a voz começava a se esconder em um canto qualquer da minha memória, lá vinha o homem novamente.Olhou em minha direção, achei até que tentaria um contato imediato de 42,6 graus, mas desviou o olhar e filosofou : O que eu quero mesmo é que todo mundo seja feliz.Cada um no seu cada um!
Tudo pareceu desaparecer por um instante, exceto a afirmação que ficou no ar, mastigando meu pensamento.


Essa reflexão é antiguinha, mas atemporal..

quinta-feira, 17 de março de 2011

Eu tenho uma amiga que é linda porque é linda e pronto!
Contudo, a beleza que ela ostenta nos últimos meses a faz resplandecer.
Ingrid,  uma singela homenagem para você!



Mulher

Mulher ,
           
                             A tua fibra íntima revela-se,
                                         quase sempre,
                             Num olho raso,
                             Num sorriso espontâneo,
                             Num universo
                             De sutilezas desmedidas.

Há em mim uma displicência com relação a datas comemorativas.Tanto pelo lado consumista que evocam quanto pela pieguice  que tendem a gerar.
Fato é que dia disso ou daquilo me incomoda um pouco, independentemente do valor social que  o dia internacional da mulher, por exemplo, represente.


A pluralidade feminina, a diversidade e a convergência não resultam em fórmula ao meu ver,mas a história está aí para confirmar que ela, a mulher sempre precisou se re-inventar.Nessas andanças pelos bancos escolares, livros , revistas e blogues,algumas conclusões, dentre as quais:



"Na casa de meu pai há muitas moradas", garantiu certa vez o maior dos mestres. Não importa qual o contexto da promessa, mas uma verdade é irrefutável: cada mãe é uma casa onde habitam outras duas casas.
Uma delas é o útero,  a casa provisória onde somos instalados pelo tempo sabiamente programado pelo criador para que se componham nossos órgãos, músculos e esqueletos; nossa composição física incipiente e frágil. Esta casa nem sempre está preparada para receber um habitante e, é por isso que a outra se torna a mais significativa.
A outra casa chama-se  coração  e esta sim é sempre habitável e acolhedora. Sem teto, nem paredes, nem chão pulsa no ritmo do infinito,  porque não há limites para o amor.


Mulheres e suas caixinhas
  
       Mulheres têm especial atração por caixinhas e baús onde possam depositar o embrião descarnado de seus anseios.Ali preservados, repousam retalhos do tempo, franjas de uma cortina do teatro da vida.
Protegidas contra a poeira do esquecimento descansam as ressonâncias, os ecos invioláveis dentro de um útero tão mágico e tão frágil quanto à própria existência.

sexta-feira, 11 de março de 2011

O mar (parte II)

O trabalho tem consumido muito das minhas horas e da minha capacidade criativa,mas navegar é preciso ( no sentido de necessidade mesmo)então cá estou.

Minha última postagem falava sobre minha sede de mar e a sede era tanta que sereias em agonia encalhadas nas minhas veias secas clamavam pelo sal dos oceanos.
Nem mesmo as intermináveis horas de estrada foram capazes de insuflar desânimo no coração sedento.
Nem mesmo a chuva ininterrupta trouxe covardia ou vergonha de pisar a areia molhada.-Yes,nós temos farofa!
Minhas pernas estremeceram diante dele,o mar.E ele , sem cerimônias me enredou em suas águas nervosas e cristalinas ali da beirinha.
As sereias cantaram seu feitiço, vazaram por meus poros e dançaram com as tartarugas bailarinas da praia.Depois sopraram um beijo, desejaram-me sorte e desapareceram para além das ondas e dos rochedos escarpados da costa.
Sentei-me quase sem fôlego na areia de grãos grossos e dourados,pouco adiante um siri muito clarinho limpou a toca e nela se enfiou.
A chuva que havia parado para respirar diante do espetáculo das sereias,voltou à sua rotina de chover.Chuva fininha,mas insistente pontilhando a extensão da areia.
Eu ainda tinha uma sede inexplicável de mar, ainda que estivesse ali diante de sua grandeza.Parte de mim queria ser sereia?Ou a beleza era tanta que não cabia no ato de olhar?
Enquanto chuva e ondas marcavam o tempo, a maré foi subindo e consumindo o espaço de pernas.O espaço agora era de nadadeiras.Resolvi voar.