terça-feira, 26 de abril de 2011

Menudo

Éramos meninas e meninos do mundo inteiro fascinados com mais um produto da mídia.A bola da vez era um grupo de meninos latinos que cantava e rebolava canções específicas para o público adolescente.Se você tem hoje em torno de 40 anos, deve saber de quem eu falo.Sim, o Menudo.
Os programas de televisão (nem se falava em canais pagos) exploravam ao máximo essa febre.Repetiam incansavelmente as chamadas das apresentações do grupo,seus videoclipes (conceito fora de moda em tempo de youtube,myspace e similares),suas entrevistas e tudo o que pudesse se relacionar ao tal fenômeno.
Corríamos às bancas de jornal para adquirir revistas, jornais,pôsteres,álbuns,figurinhas e todo tipo de material possível que contivesse algum registro capaz de aplacar a febre de fã.Nada muito diferente do que ocorre hoje .A diferença reside apenas nos meios de acesso aos dados que a tecnologia oferece.
Cantávamos os maiores sucessos e sabíamos até mesmo as canções mais obscuras.Era comum também exibirmos as coreografias e o  figurino.
Eu estava no 1º ano colegial e até conseguia imitar a voz do Robi Rosa,o mais expressivo dos meninos até a chegada de Ricky Martin.Uma colega até me dizia: " Só precisa melhorar a pronúncia do inglês." Até hoje não sei por quê.Será mesmo?Nunca consegui perceber isso nitidamente,afinal meu inglês era incipiente mesmo e ela não era melhor do que eu nessa matéria.
Meu irmão namorava minha cunhada naquela época e era comum que houvesse certos encontros entre nossas família.O irmão da Eliana tinha praticamente a minha idade e devia ser mesmo tão bobo quanto eu.Certa vez fomos todos juntos para a praia.Mongaguá?Itanhaém?Peruíbe?Nem me lembro direito, pois as três cidades faziam parte do circuito de visitas à praia que fazíamos habitualmente.Eu e o Edinho, hoje um respeitável pai de família e profissional de destaque , divertíamos a família cantando e dançando " Canta,dança, sem parar...Sobe, desce, como quiser...Sonha,vive como eu...pula,grita....Não se reprima,não se reprima...ooooo". 
Minha irmã ,quase doze anos mais velha do que eu, sempre foi muito fechadona.Não era com ela que eu me abria,pedia um conselho ou partilhava emoções.A essa altura de nossas vidas, ela já era casada e tinha um lindo menininho de cabelos loiros.Não entendi muito bem quando ela um dia me anunciou que tinha dois ingressos para irmos ao show do Menudo no Ibirapuera.Se o termo ficar nas nuvens não tivesse sido interpretado pelo meu intelecto até aquele momento,minhas sensações recobriam exatamente a metáfora.
Eu sabia que da minha mãe não viria nem dinheiro nem companhia para ir a um show desses.
Minha Tata, exatamente assim que todos a conhecem até hoje,me levou.Ficamos a uma centena de quilômetros do palco.Provavelmente um dos piores lugares do ginásio,devo dizer, cenário tristemente agravado por uma miopia horrorosa que mal me impedia distinguir os membros do grupo,mas eu estava lá ouvindo,cantando, dançando e vibrando com toda aquela bobagem juvenil.E tudo passou, como naturalmente tudo passa.
Lendo as notícias na internet hoje, fui surpreendida pela notícia de que Robi anunciou que está com câncer no estômago e já iniciou o tratamento lá no Texas.Depois do fenômeno Menudo, Robi ajudou a produzir e compor alguns sucessos de Ricky.
Revendo alguns vídeos e fotos recordei algumas coisas do período em que ele esteve em destaque na mídia, algumas das quais relatei para vocês.Não renego minha boberite adolescente, pq havia muita verdade nos meus sentimentos ; a mistura da ingenuidade do período em que não somos nem crianças, nem adultos;quando somos o meio do caminho sofrendo os bombardeios hormonais, a pouca compreensão dos mais velhos e quando tudo soa tão dramático. Isso é algo que deve estar acima de qualquer julgamento.
Boa sorte ao sempre talentoso Robi.


sábado, 23 de abril de 2011

El Cid


- Nesse feriado eu vou assistir Os Dez Mandamentos,sossegadinho em casa.Nada de viajar.Minha esposa ainda está se recuperando da cirurgia.
- Aquele antigo com o Charlton Heston?
- Esse mesmo!-Entusiasmou-se.Você conhece?
- Ô! E gosto muito!Aliás gosto muito dos filmes antigos.
Essa declaração soou como notícia alvissareira.Ponto entrelaçado para prosseguir a conversa.
- Eu vi algumas das gravações de El Cid lá em Valência.Antes que eu pudesse fazer qualquer pergunta ele prosseguiu. - Eu saía da escola apressado, pegava o ônibus e descia até a praia onde eles estavam filmando.Eu tinha uns oito anos.
Imediatamente comecei a fazer eu mesma meu próprio filme,minha tela ensolarada  na luminosa distância de um tempo que não vivi.Vi o garotinho apressado de calças curtas, sapato de amarrar e meia batendo nas canelas,camisa branca de gola suada e bolso guardando uma guloseima.Aproximava-se ,encontrando caminho por entre as pernas dos adultos que desejavam ver de perto a italiana Sophia Loren e o expressivo Charlton Heston.
A façanha do garotinho se repetiu por vários dias e seus sapatos deviam levar de volta para casa os grãos da areia histórica,areia de ampulheta , escorrendo pelo calendário da vida e migrando para dentro de mim.
- A primeira exibição do filme foi lá em Valência em tela panorâmica.Todo mundo foi ver.
A conversa precisou ser interrompida,pois era horário de trabalho.Tantas perguntas ficaram no ar...O jeito foi assistir ao filme novamente.Dessa vez no youtube e em Espanhol.Vez por outra querendo enxergar um molequinho de calças curtas invadindo a tela.



Abaixo algumas fotos da locação de filmagem:



Se gostar da ideia de assistir ao filme como fiz,deixo aqui a primeira parte,depois é só seguir a sequência no youtube.



sexta-feira, 22 de abril de 2011

Belo Horizonte e arredores (parte II - o imperador Adriano)

Às vésperas do lançamento de mais um livro,a energia de Drico não poderia estar melhor,mas ao mesmo tempo que parece ser fácil falar sobre ele, tal qual o livro de areia que protagozina um de seus livros,torna-se imensamente difícil falar sobre ele.
A verdade é que meu coração é capaz de ler todas as suas histórias e compreendê-lo de maneira imediata. O problema é que as palavras se misturam com os sopros da vida, com os ventos dos sentimentos e o que se fala é nova duna, atrás de outra.
Para se falar de Adriano é preciso compreender que nunca se poderá falar de Adriano,no máximo poder-se-á falar dos encantos de Adriano.
Antes de seu talento de escritor-poeta-professor, enxergo o menino que precisava dormir todas as tardes,que fazia longas caminhadas,que adorava jogar basquete, handball e que só sabia nadar de costas igualzinho ao personagem Jerry da dupla Tom e Jerry.Eita menino cheio de imaginação!Com ele eu podia brincar que as bolhinhas de ar de dentro da piscina eram o que mesmo, Drico?? Acho que qualquer coisa menos bolhinhas de ar...
E ,se quando eu era criança, achava que a poeira que bailava nos feixes de luz da janela do quarto eram fadas,com meu amigo eu podia imaginar mais.
Fazia muito tempo que a gente não se via, não se tocava.Nossa comunicação ficou restrita aos e-mails e aos telefonemas.Nada mais cruel para quem ama.
Há muito anos,ele me entregou uma folha com um poema do Gonçalves Dias:


Seus OlhosSeus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, - mais doce que o nauta
De noite cantando, - mais doce que a frauta
Quebrando a solidão,
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.
São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,(...)

Puxa! Eu adorava o tal poema e ele ali, inteirinho escrito pelas mãos do meu amigo Adriano.Ele que compreendia bem a minha alma inquieta e alvoroçada pela poesia.Ele que também de origem humilde saltou para a vida como os peixes do Rio Piracicaba.
Participamos os três:Eu ,Bernardo e Adriano de momentos marcantes das vidas uns dos outros como se do livro da vida ouvíssemos : " Não sei! Só sei que foi assim..."


No domingo pela manhã,resolvemos visitar Inhotim.Honestamente eu não tinha a menor ideia do que esperar,mas lá fomos nós.Abaixo postei algumas das fotos que tiramos lá.








Tamboril, a maior árvore de Inhotim
À beira de um dos lagos...um doce pelos pensamentos deles.
Essas plantas são tão cheias de possibilidades imaginativas.... Isso não parece um jardim
de polvos ?


As caminhas são compensadas pelo paisagismo.


Adorei essa galeria... Abre-te, Césamo!

É duro não saber onde as coisas começam ou terminam.Se é que começam ou terminam.

Essa galeria realmente impressiona.
Élio posando no banquinho feito de um tronco.


quinta-feira, 21 de abril de 2011

Belo Horizonte e arredores (parte I)

Pegar a estrada que me levou a BH há mais de 15 anos e que depois me trouxe a Piracicaba para desenhar uma trajetória de reencontros me enche de ternura.Ternura,eita palavra difícil na boca do povo de hoje em dia!Apenas uma final de semana é muito pouco para dar conta de atender à necessidade de dividir o tempo que o tempo recobriu de saudade.Contudo, tentamos.
Bernardo e Adriano são duas das pessoas com as quais eu desejo passar minha velhice,sob o risco de nunca,jamais envelhecermos- exceto na casca.As gargalhadas mais espontâneas,a sinceridade crua e muitas vezes dura, o olhar amoroso e profundo, a nudez da alma,a transparência da admiração são alguns dos ingredientes que se entrelaçaram para compor essa música que somos.Música clássica alimentada por Bernardo( hoje um pouco mais tecno),os tambores de Adriano,meu cigano lado que transita do flamenco ao rock.Somos uma diversidade una.Somos e seremos eternos enamorados. 
O tempo judia,inventa a distância e faz questão de passar correndo quando sente inveja da felicidade alheia.
Os poucos momentos que tivemos foram invejáveis mesmo.Até eu senti inveja !

Da enorme janela da sala,vê-se BH, crescendo,crescendo...
Para que os cenários do nosso encontro adquirissem maior mineiridade,passeamos pela Serra do Rola-moça,já ouviu falar?Esse também é o nome de um poema de Mario de Andrade. 

Havia uma chuva se formando em torno de nós e víamos as nuvens carregadas se alastrarem feito imensa praga de gafanhoto.À medida que subíamos a serra,acabamos deixando-as atrás em sua velocidade paciente.Resolvemos assistir de camarote um espetáculo da natureza no Mirante Morro dos Veados.Lugar impressionante!Os olhos demoram para captar a expressão do lugar.
Impressionou-me escutar o vento.Parecia a cavalaria alada arrastando com vigor  a massa de nuvens acorrentada.Os olhos ardiam de prazer com aquela beleza terrível!De arrepiar mesmo!
Ali da beirinha, de frente para a face verde das montanhas curvilíneas e voluptuosas.Conversei com o vento que passava nervoso- talvez acelerado pelas asas do milhares de Pégasos - E vinha atabalhoado,trombando forte contra as costas das montanhas.O ruído alto cambaleava de uma pra outra borda e quando chegava ali onde eu estava, derramava-se em uma energia gélida,varrendo tudo com força.Não era canção era pressa-mensageira...aí vem a chuva!
Caio e Be








O frio intenso e o medo dos raios nos fez devolver as rodas para a estrada.Sinuosa, estreita e intimidadora.
Nosso objetivo na sequência era chegar a um local chamado Verde Folhas (assim mesmo sem concordância).Lugar lindo,muito interessante para um contato com a natureza.Assim que chegamos ao restaurante e eu já começava a preencher o termo de responsabilidade para que o Caio pudesse realizar as atividades de aventura,a chuva chegou.Parecia a chegada da tal cavalaria na companhia de Zeus, cuja presença anunciava lançando raios.Resultado : práticas suspensas para a frustração de Caio e meu alívio,uma vez que um dos raios caíra ali bem perto de nós,perto o suficiente para chamuscar os braços e as costa de uma garotinha que havia acabado de se dirigir para o local de arvorismo.
O jeito foi ficar ali,assistindo a chuva, sentindo a presença do sagrado na beleza da natureza.Não dava vontade mesmo de ir embora, mesmo sabendo que no fundo a chuva não passaria tão já.
Mesmo embaixo das gotas geladas, Élio , Caio e Bernardo resolveram descer para a cachoeira.Na hora achei a ideia a coisa mais infeliz do mundo.O céu muito cinza, a tarde chegando no seu finalmente,lama para todo lado ,uma chuvinha fina e fria e o meu espírito avesso a aventuras...Deixei-os ir à frente.Era uma descida razoável entre pedras e degraus com a feliz ideia de cabos de aço para apoio.Mal comecei a descer no meu ritmo estrategicamente lento e cuidadoso,senti medo.Eu sou mesmo muito medrosa quando se trata de enfrentar a natureza ,seus insetos e suas surpresas,admito.Eu poderia voltar, admitir o medo,ficar esperando no restaurante, no carro me mordendo de curiosidade e vontade,ou eu poderia arrancar as sandálias, enfiar os pés nus na terra melada,encharcar minha roupa, bater o queixo de frio e...
Se é que eu calculei tudo assim tão racionalmente, não tenho a menor noção,pois em fração de segundos, respirei, e larguei as sandálias que escorregavam muito de lado,pedi licença e iniciei a descida com uma coragem desconhecida.Algo intenso, forte e reenergizante tomou conta de mim.Alguns degraus eram altos e senti os músculos das minhas coxas repuxarem.Ao me verem,os meninos me saudaram.Bernardo me deu a mão e transpus o último obstáculo antes de chegar a ela, a Cachoeira das Piabas.Só estávamos nós e os seres invisíveis.
Élio e Be

Eu e Be

Parece noite, não é?? Mas ainda não era.
Essa foto saiu melhor



Você deve ter notado que Adriano ainda não apareceu na história, não é??

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Dia do beijo

Entre as inúmeras obrigações de trabalho que desgatam meus olhos,meu tempo(ah! tá! recebo por isso),minha voz - que quer e precisa falar sobre tantas outras coisas além das regras intermináveis-, meu sonho, minha piada,meu ânimo e tantas outras coisas,cavei uma brechinha (quase indevida porque os prazos correm,o tempo escorre e eu bem queria correr deles).
Era isso ou cavar mais um tantinho no desespero....
Pois é! 13 de abril é o dia do beijo(eu já comentei por aqui que não gosto muito dessa história de datas comemorativas),mas escorregando por entre as páginas da internet, caí em um blog que falava do dia do beijo no ano passado.Um blog muito interessante,aliás:
Em 14 de Agosto de 1945, a Segunda Guerra Mundial tinha terminado oficialmente e em Nova York, na Times Square, uma quantidade enorme de pessoas se reuniu para a celebração.De repente um lindo marinheiro, puxou uma enfermeira pelo braço e a beijou. A cena foi imortalizada pelas lentes do fotógrafo Alfred Eisenstaedt para a revista  Life e se tornou o símbolo da alegria e da vitória.
Eu apenas posso imaginar o tipo de emoção e alívio que aquelas pessoas vivenciaram, porque , de fato, nunca vivi os tais tempos de guerra.
Minha avó viveu esse período e me contou acerca das dificuldades para conseguir determinados gêneros, chegou a enfrentar filas imensas antes do amanhecer para conseguir carne, por exemplo.Falo de um tempo em que não havia Carrefour nem Extra ou Wal Mart.Falo de um tempo e de uma família humilde às vésperas de se mudar do Rio de Janeiro para São Paulo em busca de melhores oportunidades de trabalho.
Dá para imaginar que minha avó precisou portar um salvo-conduto?

Quando este documento foi emitido,Olinda tinha 33 anos e a guerra ainda não tinha chegado ao fim.Acredito que o rádio tenha sido sua mais significativa fonte de informação e não faço a menor ideia se ela pôde ou não ver a tal foto do beijo.
Pelo pouco que conheci de sua austeridade moralista,imagino que teria dito: "Que pouca vergonha!"
Pelo pouco que conheço da alma feminina,no seu íntimo deve ter sonhado...um salvo-conduto para o beijo, por favor!!

domingo, 3 de abril de 2011

Grilos

Faz mais de dez anos que escrevi esse conto.Ele ficou dormindo quietinho.Agora eu o resgatei e sei o que mudaria nele,mas não mudei nada.Esse fica como nasceu.Imperfeito como eu.

Naquela tarde o tempo escorreu facilmente entre os dedos.O homem molhou o jardim e depois alinhando os velhos chinelos religiosamente do lado direito da cama  , deixou a porta aberta : convite aos grilos ,que à vontade, acomodaram-se sobre o lençol .
Na manhã seguinte, por engano, entregaram um jornal na casa errada. Definitivamente iria aprender a ler.
Tendo no peito aquela sensação imprecisa, uma certa necessidade de buscar no dia qualquer calor vira a idade chegar cedo , cedo demais ; antes mesmo que tivesse tempo para pensar na época de recolher-se ao leito.
Tendo tempo de sobra , ficava desconcertado sem saber muito bem o que fazer com aquelas horas em demasia , alternava-as entre afazeres corriqueiros ; consertar uma torneira , arrancar tufos de mato do quintal , plantar alguma semente .
Confuso queria programar-se , organizar-se na suspeita tumultuada da urgência do tempo. Agora sim quem sabe poderia juntar as primeiras letras e ler...ler como tanta gente vivia fazendo. Não que ele não soubesse algumas palavras, sabia como ele mesmo dizia, divulgar placas , nomes , coisas que não vêm ao caso agora .Relevante é saber que  lhe parecia tão bonito ver as pessoas abrindo as páginas cinzentas dos periódicos ... parecia tão importante.  Ali sobre aquele universo diariamente renovado ver pessoas juntando letras , notícias e horas .
Havia dias  em que se animava realizando mil tarefas .Encadeadas , profícuas encobriam o tiquetaquear do relógio . Esquecia-se de comer.
Contudo alguns dias , e eram muitos , cansava-se só de saber que as horas rolariam grossas .Impacientando-se, começava e não dava cabo de nada. Pensava em fazer algo e acabava arranjando obstáculos . De repente ,  tudo parecia perfeitamente adiável . Então , nesses dias preguiçosos aquela saudade era o quarto, a sala e a cozinha . Sentava-se num velho banquinho que tinha feito há séculos .
Para quem o teria feito ? Não conseguia se lembrar , mas o banquinho permanecia resistente e alheio aos acontecimentos . Imóvel. O velho lhe confiava a tarefa de suportar o peso da memória além daquele corpo pouco confortável e quase irreconhecível que sentava mudo .
            Ali diante das roseiras da sua amada Júlia , ele  e o banquinho ainda podiam vê-la cuidando de cada detalhe daquele jardim,  vibrava ao vê-la removendo tiriricas , regando todas as plantas, podando , eliminando pragas e sobretudo cantarolando “As rosas não falam”. Sempre que Júlia terminava a canção comentava sozinha esfregando as mãos no avental : “Quem disse que não falam?” Soltava um riso frouxo e completava : “Falam e sobretudo escutam!”
            O olhos captavam a cena  naqueles tempos em que o viço dos primeiros anos de casados pulsava.  Divertiam-se .
As mãos costumavam interromper a concentração da esposa , arrancando uma flor qualquer e colocando-a nos cabelos mal presos . Rodopiavam como se valsassem . Com o tempo Júlia foi perdendo o encanto , ficando  , aos poucos ,  incomodada com a brincadeira do marido . Esbravejando , batia as mãos em seus ombros .Que se aquietasse ! Ele achava graça , sorria, beijava-lhe a testa   e a soltava  aos cuidados do dia . Nunca soube o quanto a amada   irritava-se .
            O zelo de Júlia pelo jardim jamais sofreu qualquer deslize , nem mesmo quando os filhos vieram . O marido achava excessivo aquele desvelo  , mas aceitava e guardava nos bolsos ( furados decerto ) , qualquer reprovação .
            Os filhos cresceram e um certo silêncio foi preenchendo a rotina . Júlia continuava a cultivar suas flores , a cantarolar , porém o marido cultivava preocupações e temores .  Passou a não notá-la ali entre tantas flores. Nem ela percebia-se , às vezes confundia-se com as rosas , suas cores e seu silêncio. Numa manhã orvalhada também desabrochou .
            Agora , sentado naquele banquinho tristonho num acender de luzes perdia aquela lembrança , rolava com as pontas dos dedos algumas pedrinhas e seguia a trilha das formigas por minutos intermináveis sob o sol quente , sem nunca saber em qual das rosas  sua amada voltaria a desabrochar. As cores causavam-lhe uma certa confusão nos olhos . Se pudesse ler um jornal  ,  não ficaria ali lendo e relendo o mesmo livro cheio de páginas perdidas .
            Fim de fevereiro e a promessa  cumprida de chuvas o aturdia . Tinha de ver o jardim através da janela . O vidro embaçado  , quase todas as tardes . O banquinho girava num vazio . Março terminando aos poucos , aos pouquinhos , também a chuva .
            Não recebia visitas , nem mesmo de parentes. O cachorro , amigo dos últimos anos já estava enterrado .
            Depois das chuvas o jardim perdeu-se no mato , porém os dias de desânimo eram cada vez mais freqüentes . Júlia , com certeza devia estar zangada ,
            O velho colocou novamente o banquinho diante das rosas . O chão úmido, deixava as formigas de fora do cenário . Por pouco tempo decerto . Roçou a pela branca de uma rosa e o calor intenso permitiu-lhe sentir os aromas da terra ascenderem no ar . A tristeza recendeu.
O jardim encheu-se de grilos  . Havia tantos ! Saltando de um lado para o outro criavam um mosaico estranho e movediço .
Levantando-se do pequeno banco , Antenor caminhou até o portão ,  triste figura . Olhou para a antiga rua pela qual passara inúmeras vezes , a velha rua que sempre lhe trouxera de volta para casa . Nenhuma criança , nenhum vizinho , nenhum grilo do lado de lá . Todos os portões fechados como se o destino tivesse encerrado tudo num único pensamento . Solitária , cada coisa estava em seu silêncio , exceto os grilos ...