quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Os filhos do Cigano




    Acabei de receber um telefonema de São Paulo.Era meu irmão, um dos gêmeos, a quem chamo e sempre chamei carinhosamente de Boro - não me perguntem o significado disso - Boro de Borino. O outro gêmeo , para criarmos uma distinção, era o Boro de Borão. Acho que foi o Vandir mesmo quem criou esses epítetos. Coisa de menino cheio de invenções para com a irmã mais nova, dez anos mais nova.
    Faz dias que a televisão vem apresentando um comercial da Natura sobre uma garotinha que indaga sobre haver meia-irmã, meio primo, meia-tia e conclui que é irmã e pronto! 
Eu nunca me senti metade de nada e meus irmãos nunca usaram o termo meia-irmã, aliás, não me lembro de ter ouvido ninguém na família nos rotular assim, O fato é que crescemos e seguimos rumos distintos , e quando falo em rumos, falo de distância física mesmo. Acentuada , obviamente, pelos rumos de nossas escolhas, nossas novas famílias.
    Eu dizia que meu Boro de Borino me ligou.A voz um tanto embargada já me adiantando que não me trazia notícias ruins, mas algo surpreendente. 
  Para se compreender tal surpresa, preciso falar sobre algumas pontas soltas na história de nossas vidas, no caso, na vida deles  - porque as pontas soltas na história da minha vida são outras.
   Meus três irmãos mais velhos são filhos do primeiro casamento da minha mãe. Hoje sei que não se tratava de um casamento no sentido exato da palavra. Descobrimos isso muito mais tarde, porque não era assunto de criança e, sobretudo, pesava moralmente. Enfim! Moça de 17 anos, voluntariosa e bonita , nossa mãe - até então, mãe deles - vivia com esse oficial da polícia rodoviária, um homem cujo apelido era Cigano. Pelo que conheço dos relatos de avó e tios, um homem de gênio impulsivo , mas belo.Minha avó repetia à exaustão a história do dia em que ele levou um coice de um cavalo no quartel e o matou com um soco na testa. - cavalos têm testa? O fato é que esse homem já possuía uma esposa, uma família com filhos. Deles nada soubemos nunca.
    Os meninos eram bem pequenos quando em perseguição a um bandido na Via Anchieta, já bem próximo à descida da Serra do Mar, Cigano sofreu um acidente.Conta-se que havia tambores com fogo para iluminar o local, o fusca em que se encontrava o oficial - seria mesmo um oficial ou me trai a memória? - bateu contra um desses tambores e o carro se incendiou. Com o corpo robusto, não conseguiu  passar pela janela da porta que estava emperrada e a tragédia foi inevitável.
    Foi sepultado com honras militares e se tornou um eterno herói na mente e no coração desses meninos.
No sepultamento , provavelmente , se comentou muito sobre a viúva que se vestiu de vermelho. Essa era a minha mãe, que chocava o povo da Vila Carioca.
   O telefonema? Ah, sim! Meu irmão quis compartilhar a amarração daquelas pontas de que já falei. Era para me dizer que esses irmãos , filhos da viúva oficial, passaram 50 anos procurando os irmãos e , apenas agora,  conseguiram entrar em contato com eles. A coisa toda foi agora há pouco, pouco antes de eu receber o telefonema. Fiquei feliz por eles, Fiquei mesmo! Senti a força do sangue do Cigano aproximando os filhos inocentes, Belo, belíssimo. Meio-irmãos?? Irmãos. Até eu que não tenho o sangue do Cigano fui incluída. Querem reunir os irmãos. Irmãos. Eu sinto que aquela lacuna imensa que povoou o imaginário dos meus boros começará a ser habitada por novas histórias, novas imagens velhas a que eles nunca tiveram acesso. Era apenas uma antiga e carcomida foto a referência paterna. Virão outras e os filhos do Cigano o trarão de volta à vida entre tantas recordações.