quinta-feira, 19 de agosto de 2010

There´s a ligth that never goes out

Um dia me entregou uma folha de papel onde estava escrita a letra de uma música da banda inglesa The Smiths.Àquela altura um misterioso traçado começou a se desenhar na linha do tempo de nossas vidas, mas ainda era uma rabisco de difícil compreensão.
A letra dizia "There´s a ligth that never goes out..."Li, reli e uma profundeza sem nome disparou sua mescla de sensações.Talvez a percepção e compreensão de todo o universo com suas infinitas possibilidades tivessem sido capturadas naquele instante, mas jamais reeditadas com aquela configuração.
Jorge era no mínimo irritante e se havia quem gostasse muito dele, mulheres sobretudo,havia também quem se incomodasse com suas provocações,sua insolência e seu ego.
Chegava para a aula cansado,após  uma jornada de trabalho em um banco internacional.No início era funcionário do Bank Boston e depois do Loyds. Depois de sacolejar por um tempo em um coletivo.Não tinha tempo para jantar e sua irmã costumeiramente o abordava à  porta da sala com lanches e frutas.
Sentava-se nas primeiras cadeiras e desmontava aos poucos a fachada com ares de executivo.Paletó, gravata,botões da camisa..Fazia graça e tinha um humor de gosto questionável, mas atento era bom aluno.
Com o tempo estávamos no mesmo grupo e cada vez mais próximos nos tornamos amigos.Jorge aproveitava a viagem de ônibus para ler, gostava de empregar técnicas mnemônicas para estudar latim .Tivemos um professor severo que nos exigia excelência e execrava a mediocridade.A maior parte dos alunos o detestava.Quem estuda à noite raramente tem tempo para estudar com o comprometimento que ele julgava fundamental para quem fosse se tornar um cientista da língua. Jorge e eu apreciávamos a preocupação do mestre.
Era ele mesmo quem cuidava de suas roupas.Lavava e passava e o fazia com extremo capricho.Suas meias eram perturbadoramente brancas como podíamos ver aos sábados.Era nesse dia que ele fazia questão de postar-se de maneira relaxada.Quando estava quente, usava camiseta regata e deixava seus músculos morenos à mostra,desabotoava a calça jeans e tirava os tênis imaculados de tão limpos e estendia os pés na cadeira em frente.Tal postura desafiava alguns professores e gerou contendas.
Esse amigo passou a frequentar minha casa, se tornou um amigo inseparável,presente e fiel.Por trás da faceta irritante e provocadora ,de todo o rock dos anos 80,das narrativas hilárias e impensáveis de suas traquinagens,eu tocava seu espírito  e nos tornávamos a um só tempo irmãos.
Quando entrava em casa, ouriçava minha avó Olinda que contava com mais de 80 anos.Ele a provocava, perguntando sobre namorados e bailes.Ela se divertia: "Vá, vá, vá, moleque!"Jorge insistia até cansá-la e ríamos todos com essa falsa irritação da vovó.
Certo dia ele a surpreendeu.Pegou-a no colo, aquele corpinho frágil de um metro e meio nos braços de um belo moreno de quase um metro e noventa.Levou-a para o meio da rua como se fosse seu namorado.Tenho certeza de que ,embora se ruborizasse de vergonha, sentiu-se viva e feliz.Vira e mexe ela me perguntava:
_ Cadê o Jorge? Cadê aquele aquele moleque malcriado?
_Jorge viajou , vó.Está em Londres.
Um dia, o coração fraco e triste da vó Olinda depois da perda de um filho,resolveu calar-se e foi ficando quietinho pouco a pouco.Eu não estava em casa, mas Jorge estava.Ele a carregou no colo pela última vez.Ela não riu nem se envergonhou.O príncipe a colocou no carro e ela não voltou mais para casa.
Aquele rabisco que se trançou há tantos anos virou história de vida e embora passemos tempos sem nos ver, sem nos falar, sabemos que existe uma luz que nunca se apaga.

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