sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O mar

A sensação nervosa dos pés quentes na água fria que chega assim em anéis com auréola espumosa é a sensação da infância revivida,do encontro proibido.
Desejado e temido.
Depois dos beliscões gelados na pele,o peso nas pernas,os respingos salgados,a surpresa malandra da onda chicoteando o dorso.
As vozes ficando ocas no farfalhar das saias da mãe-água e uma súbita vaga enchendo de prazeroso vazio uns poucos segundos.
Esse é o meu lugar no mundo :esse intervalo entre a sofreguidão da incansável arrebentação e o arrastar de areias da beira.
Esse intervalo de uma onda não formada e gorda de água que me suspende e me sustenta.
No colo da eternidade que não dura mais do que uns poucos segundos...
..feminino é o mar como querem os franceses.

ilustração de John Barnard

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Para sempre fenômeno

Na casa da minha infância cresci vendo dois irmãos gêmeos do signo de gêmeos fazerem as paredes tremerem sendo o dia de clássico ou não.Houve momento em que minha mãe, muito menor do que os dois, via-se obrigada a colocar o corpo entre os dois como se pudesse levantar um muro e obnubilar a fúria entre um corinthiano e um palmeirense.
Eu era muito pequena e embaixo de todos os argumentos regados a uma baba furiosa e apaixonada entendia muito pouco.Mas sob este mesmo escarcéu que tinha como plano de fundo a narração de Osmar Santos com seus pimbas na gorduchinha,fui ficando corinthiana. Se é que alguém fica ou vira corinthiano.Tenho impressão de que se nasce assim, com o escudo gravado no DNA.
Quando chegava a época de carnaval e eu podia ir me divertir na matinê da associação do bairro, vulgarmente chamado por nós de Poeirinha,minha marchinha favorita era "Doutor, eu não me engano,meu coração é corinthiano..."
Muitas vezes, curiosa que sempre fui, debruçava-me na grande coleção de revistas Placar dos meus irmãos e me permitia doutrinar pelo irmão de sangue apaixonado que falava dos craques :Rivelino,Vaguinho,Biro-Biro,Wladimir,Palhinha...e fui crescendo... Sócrates,Casagrande,Zenon,Rincón,Vampeta,Marcelinho...
E Vandir com extrema excitação relembrava a grande vitória contra a Ponte em 77, demonstrava as jogadas, refazia os lances e eu gritava GOOOOOOOOOOOLLLLLL com a molecada do bairro.
Fazia muito tempo que eu não sentia as lágrimas descerem no rosto por causa do Timão.Agora, recordando a infância, a influência do irmão .(Coitado! O palmeirense não teve forças),as alegrias e tristezas de uma torcedora sem fanatismo é que me dei conta de que tenho um coração corinthiano e a despeito de todas as piadinhas (apenas um outro torcedor que goste mesmo de seu time,mas que sabe muito bem distinguir torcida de fanatismo extremista sem eira nem beira,é capaz de avaliar o sentimento nostálgico e doce que me bate à porta.)
Hoje, como eu dizia, chorei.Ver Ronaldo, despedir-se humilhado pelo fracasso de uma derrota foi demais.A parcela dos torcedores que um dia lhe beijou a mão,cuspiu-lhe no rosto,esquecendo-se do atleta sensacional que sempre fora.Todos sabiam que depois de tantas lesões ele não poderia mais jogar como um dia pôde e ainda assim,quantas vezes Ronaldo nos encheu os olhos e o coração com jogadas geniais.
Sinto muito que a ingratidão seja o brinde de despedida dessa torcida.Não de toda ela, tenho certeza!
Não de mim que guardarei no coração corinthiano o jogador de lances fenomenais!

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

As aves tomam conta



No sábado fiquei angustiada com um passarinho que adentrou o recinto onde eu e amigos tecíamos reflexões em torno da existência.Com um pé direito bem alto e uma sequência de vitrôs,janela e porta, o pobre insistia em procurar saída na parte mais alta e fechada.Acho mesmo que ele buscava a luz que atravessava os vidros e nem se dava conta das correntes de brisa que circulavam nas aberturas inferiores.Não foi sem um certo custo que se conseguiu dar liberdade ao singelo passarinho.
Hoje,por volta de 15 para o meio-dia,na sala dos professores da escola em que trabalho, vi um beija-flor na mesma agonia do outro bichinho.Muito mais veloz, afoito e emitindo sons que intensificavam minha aflição, o pássaro em questão voava rente ao teto.Havia várias pessoas naquele ambiente,mas ninguém parecia muito preocupado ou incomodado e eu não sabia o que fazer,até que um professor adentrou a cena e aconselhou:
- Apaguem as luzes!
Dito e feito,em poucos segundos o bichinho encontrou um vão que lhe garantiu a liberdade.
Fiquei pensativa.Acho mesmo que passarinho é lição.Na ânsia das coisas, ficamos cegos, e nos enganamos com a fontes que nos podem trazer liberdade.Às vezes ,precisamos mesmo do escuro, do silêncio para enxergar além do óbvio.

Mas mudando o foco,porém não o tema,há alguns anos, escrevi essa crônica abaixo.Resolvi desenterrá-la para partilhar com vocês.

As aves tomam conta

Tudo no final de outubro e início de novembro... Entre bruxas e mortos...Minha avó se estivesse viva recordaria as crendices de seu tempo, os agouros, os vaticínios...
Eu, como me sinto integrada no mundo (ainda que morra de medo de galinhas, galos e similares...) até pressinto na presença de alguns animais algum tipo de recado, algo do plano simbólico, mas sem a paranóia que assombra tanta gente por aí...
Pois, noite destas, resolvi lavar uniforme escolar dos filhos. Fui para os fundos da casa e instantes depois ouvi um pio agoniado. Pensei que fosse uma coruja , mas nem dei bola. Era uma coruja. Ela estava pousada no poste da casa ao lado  que agora está desabitada e insistia em proclamar sua aflição. Esse poste fica junto ao muro que dá para o meu quintal. No meio da escuridão fiquei observando-a com ternura e ela mesmo notando minha presença nem se perturbou. Tive a impressão de que ela procurava um filhote. Talvez coisa da minha cabeça, mas foi o que senti. Ficamos ali num acordo tácito, aquela ave noturna, ambígua, sombria  e eu ambígua , noturna e sombria.
Depois ela se foi e lembrei da minha avó dizendo...'Quando a coruja rasga mortalha é sinal de morte por aí “Eu gostei de vê-la porque simboliza a sabedoria e prefiro a versão grega à popular”. A coruja é símbolo de Palas Atena . Será que sua visita a mim teria  ofendido a Zeus, seu pai?
Outro dia, a aventura com aves foi menos confortável.Com o sol quente da comecinho da tarde, uma das cadelas que normalmente estaria estendida preguiçosamente num canto da casa, começou a latir insistente. Fui ao quintal e pousado também no telhado da casa ao lado, havia um urubu, um urubuzão . Tenha dó!!! Senti uma certa náusea. Fiquei observando da janela do quarto o pouco caso do bicho que logo se viu acompanhado de um seu semelhante. Na antiga Grécia há uma versão que narra a vingança de Zeus contra Prometeu que teria roubado o fogo do Olimpo para dá-lo aos humanos, seus protegidos. O fogo é símbolo do conhecimento, assim como no mito de Adão e Eva. Zeus prendeu Prometeu no alto do Monte Cáucaso e diariamente um abutre lhe comia o fígado que voltava a crescer e assim ininterruptamente Prometeu agonizava diante da ameaça alada.
Enfim concluí que o calor era muito forte e o azar seria do bicho, preferi deixá-lo pra lá e voltar pra minha vida cotidiana que retorna a cada dia como o fígado de Prometeu.







domingo, 6 de fevereiro de 2011

Fofuras




Acabei de ver uma reportagem a respeito de três professoras que foram consideradas inaptas a exercerem a função para a qual prestaram concurso no estado de São Paulo. 
Anteontem, em uma conversa (como sempre produtiva e agradável) com Ronaldo (meu ex-professor de kungfu ,amigo, mestre, terapeuta de medicina oriental),falávamos sobre saúde e o propósito das artes marciais como instrumento para sua obtenção e manutenção.Falávamos também sobre os excessos cometidos pelos instrutores de academia que costumam  orientar,sem escrúpulos,os alunos a consumirem anabolizantes e outros produtos para aumentar a massa muscular.
Curiosamente,a instrutora de musculação da academia do Ronaldo é uma moça bem cheinha,coisa inédita para mim e talvez até para você.Ele me disse estar muito satisfeito com a nova instrutora,pois ela demonstra muita competência e o fato de ela fugir ao padrão estético que predomina no segmento não a desabona como profissional.
No embalo da conversa, ele que trabalha há anos com artes marciais e com diferentes tipos de pessoas, foi categórico ao dizer que tem observado que o preconceito com relação a obesidade supera a questão étnica, a mais alardeada.
Insistiu em afirmar que nem todos os casos de obesidade estão relacionados apenas ao sedentarismo e à gula. 
Como se diz: Há casos e casos.
Voltando à história das professoras,não há como não me solidarizar com elas.Eu mesma sou/estou gordinha e não me sinto inapta como profissional.(Quem me conhece pode corroborar o que digo).
Sonhar?Quem não sonha com uma bela silhueta? Até as mais magras brigam por isso.Acho que a questão está aí:eu cansei de brigar com uma natureza teimosa.Escolhi ser feliz e parar de me comparar com um modelo que não me é possível ser nessa vida.
Desde que minha felicidade me possibilite manter a saúde,por que não?
Fico na torcida pelas colegas gordinhas, especialmente por uma que vinda de uma origem pobre , estudou na USP e deseja se efetivar como funcionária pública justamente para trabalhar com alunos  de sua região.Nobre!