segunda-feira, 6 de abril de 2015

O cisne branco

Sentados à mesa próxima da porta de saída - ou entrada dependendo da perspectiva -, mastigávamos quase mecanicamente, quase insipidamente ainda que a comida estivesse muito boa. Era só o que fazíamos, saciávamos a fome do estômago, mas eu tinha uma fome ainda maior que a africana. Eu sentia fome de gente, de histórias,de luzes e sombras que toda fotografia permite retratar.
Mastigávamos e com o canto do olho vi a bengala se ajeitar e apoiar as pernas frágeis dos cabelos brancos ali ao lado. Levantou-se e cruzou dois metros até alcançar o caixa livre. Deteve-se interrogando alguém, um garoto com fones de ouvido.
- Você gosta de música?
- Como ?
- Conhece a canção:Qual cisne branco em noite de lua...? - cantarolou com a voz gasta pelas décadas.
A resposta negativa não surpreendeu o senhor. O pai do garoto se aproximou, repousou os braços sobre os ombros do menino e respeitosamente ouviu a mesma pergunta:
- Ele não conhece. E você? Qual cisne branco em noite de lua...
Não fiquei olhando para não ser invasiva e comentei em voz baixinha acessando meu companheiro ao lado , alheio a tudo.
- Hã?
- Eu conheço o Cisne Branco. Expliquei-lhe o contexto.
-Ah!
Aquela fome que não tinha sido saciada, se intensificou e, como quem cruza os dedos e torce para ser notada, pensei firme, pensei forte.Eu quero conversar com o senhor.Eu quero saber quem é e por que insiste em indagar sobre a música. Eu queria conversa com o avô que a vida me negara.Eu queria sugar da seiva da velhice sábia e paciente para a qual quase nunca temos paciência.
A senhora dele também se pusera em pé e seguira para mesinha de café atrás de um chazinho digestivo.Cruzou com pessoas conhecidas, trocaram cumprimentos e gentilezas e novamente sobreveio a pergunta sob a aba da boina.
- Você conhece...? - cantarolou novamente , mas as vozes se sobrepuseram nas intermináveis misturas de nomes de amigos e parentes a quem se emitem cumprimentos e lembranças remotas. Cessou-se a tagarelice.
Talvez de tanto desejar com o coração límpido, o senhor parou a meu lado, num gesto de despedida, findo o almoço dominical.
Antes que descesse o degrau e se atirasse vida afora, mais uma vez ateve-se à pergunta:
-Você conhece...-acompanhei os versos - Qual cisne branco em noite de lua, vai deslizando num lago azul...
- Sim , é o hino da marinha!
O rosto do avozinho se iluminou e ali, naquele encontro fortuito, entabulamos uma breve conversa. Era impecável a linguagem. Seu Cláudio, 86 anos e dona Helga. Juntos caminhamos nas ruas mortas do domingo até onde nossos carros estavam estacionados. Era uma solidão tão grande, mas nenhum traço de infeliz destino. Simples aquisição de tempo. Simples prosseguir de história. Se há mágoas,perversas decisões,tristeza e abandono, não vi. Ouvi histórias, ouvi traços de uma história. Apertei as mãos envelhecidas. O sorriso gentil que me foi lançado ao final das contas foi terno,manso, suave, como s quem já percorreu um longo caminho, sabe soprar para quem vem chegando. Entraram no carro e saíram deslizando num lago sereno de horas azuis...

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