sábado, 29 de maio de 2010

O NEGO D´ÁGUA


Um dos mistérios que nos arrasta pela vida afora são as histórias que nos são narradas com tamanho entusiasmo.Acho mesmo que o ser leitor brota ao pé do ouvido.Saber ouvir uma narrativa e a ela entregar-se fecunda uma nova natureza do homem.

Não tardou para que alguém na noite mal iluminada do sertão baiano começasse a proferir seus encantamentos.As mantas de carne sacudiam-se sombrias e fantasmagóricas enquanto era tecidas as histórias e nós ali sentados, crédulos e incrédulos.
Decerto os mais crédulos eram os que iam contando os sucedidos no Velho Chico e eu.Essa intimidade com o Rio São Francisco não sei onde começou, mas é assim que o tratam ainda hoje.
Agarrei-me a minha mãe, mas não conseguia parar de ouvir a história do Nego d´água, temendo que em uma tresloucada aventura, ele saísse do rio, transformando suas nadadeiras em asas funestas cheio de desejo de me capturar.

Com o corpo coberto por escamas, o Nego d´água habita as profundezas do Rio São Francisco e já foi visto por muitos pescadores e moradores das regiões ribeirinhas.Quem já topou com ele, conta que é uma mistura de um homem negro com um anfíbio;cabeça grande,baixa estatura, braços longos e os dedos unidos por membranas.
Atazana os pescadores, furando as redes, afugentando os peixes , sacudindo, batucando e virando canoas.Costuma arrastar mulheres para seu reino e os homens que arrasta transforma em escravos, a não ser que o pescador lhe lance fumo que aprecia muito.

A mim não bastava ouvir , eu queria detalhes e perguntava atormentando as pessoas da roda."Como ele aparece? De onde ele veio? Por que ele faz isso? Ele é muito feio? Sua pele é pegajosa?..." É claro que não havia respostas para a maioria das minhas perguntas.Sabe aquela fala de Chicó em O Auto da Compadecida: " Só sei que foi assim!".Pois é!Quem conta, apenas reproduz o que já ouviu, mas a história para mim era tão verdadeira, que de certo modo, merecia um caráter investigativo.Eu ouvia demais os programas do Gil Gomes.

Impressionada com tudo o que ouvira, acabei ficando com medo da minha própria sombra e a coisa toda só se fez piorar quando fomos à cidade para visitar outra banda da família.Tata ficou aliviada por respirar civilização, meus irmãos não perderam a chance de azarar as mocinhas e conquistar alguns beijos.Éramos novidade, éramos de São Paulo.
A cidade de Juazeiro nasceu às margens do Rio São Francisco, enorme e poderoso.Uma belíssima ponte o atravessa bem ali onde ele faz divisa com Pernambuco.A ponte Presidente Dutra liga Juazeiro a Petrolina.E foi ali da ponte que eu vi vários meninos e jovens saltarem para as águas do Velho Chico. Eu me senti horrorizada! O que me assustava não era a altura do salto, mas a possibilidade de que o Nego d´água arrastasse algum deles para as profundezas do rio.
Da história nunca me esqueci e durante anos não ousei dormir com qualquer centímetro do corpo, descoberto ou fora da cama.Meus irmãos, infernais como os irmãos podem ser, muitas vezes se escondiam embaixo da cama e agarravam meu pé, causando-me um terror indescritível.Não adiantava saber que haviam sido os meninos.Eu sabia que um dia não seriam eles.



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