segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Masmu

Há certas coisas que se enxerga com o coração apenas. Masmu existe e dois corações a quatro mãos contam essa pequena história...




Masmu

Masmu é uma vaca curiosa e interessante que habita o alto das montanhas, lugar cheio de vegetação rasteira e ondulações no relevo por onde passam frequentemente motoqueiros fazendo trilhas. Nos arredores, Masmu desconhece, mas há quilômetros de canaviais a perder de vista e um mundo vasto cheio de possibilidades.
Ela não mora sozinha, há várias outras vacas e bois com toda sorte de coloração de pele, no entanto é ela a que se avista a longa distância , pois sua pelagem é escura salpicada por manchas brancas.
            Todos os dias, ela e seus companheiros se lançam a antiga arte de pastar percorrem um bom trecho da região onde habitam, sem nunca abusar da sorte. Não vagueiam por aí ao Deus dará sob pena de não voltarem a tempo para o local onde se recolhem quando o sol resolve deixá-los.
Masmu olha para todos os lados e ergue a cabeça para compreender a agitação no céu , enquanto as andorinhas bailam e se delicia com a coreografia das velozes figurinhas. Suas companheiras não compreendem essa perda de tempo, porque o pasto está aos pés. Contudo, os comentários maliciosos não incomodam o ruminar de nuvens da vaquinha desajustada.
Depois de se divertir com as andorinhas, estica os olhos para os urubus tão leves, suspensos em suas cordas de circo, deslizando em espirais pelo vasto céu. O coração de Masmu parece encher-se de leveza também , ela se move suavemente  e seus cascos resvalam sutilmente pelo capim.
Está só e não sente desejo de seguir pastando como sempre o faz, sente-se diferente e até poderia voar, se asas tivesse. Observa a manada no seu repetitivo ritual, nos gestos ensaiados e vazios da mastigação do dia.
Enquanto vagueia em seus pensamentos, não sente a aproximação da esperta seriema que lhe arregala um par de olhos azuis e estica as canelas finas para parecer mais alta:
-Oi!
-Olá, seriema! Quase me pregas um susto!
- Desculpe-me, é que a vi assim tão desconcertada a olhar para o céu, que fiquei curiosa. O que há?
- Nada! Apenas não me sinto tão feliz em pastar somente, em repetir o gesto cotidiano de pastar, olhando apenas para o chão. Encheu-me de alegrias observar essas aves desenhando no céu.
- Ah! Sim! É mesmo uma beleza!
- E tu, por que não voas?
- Por que não está em mim voar, a não ser que seja muito necessário. Prefiro vasculhar por aqui e ali, sentir meus pés firmes na terra.
- Eu voaria se pudesse...
- E não o estás fazendo de certo modo?
-Hummm – e soltou um suspiro-mugido não muito convencida disso.
- Sabe, Masmu, outro dia, um desses humanos que circulam por aqui leu um poema em voz alta e eu, curiosa que só, ouvi e guardei alguma coisa, falava da escolha de um caminho...
- Caminho?
- Talvez , você não possa por ora voar, mas pode escolher o caminho menos trilhado, como diz o poema...
-E o que mais diz esse poema?
A esperta seriema, conhecedora de sonhos ,soltou um típico riso que ecoou por todo o vale. Adiante, algumas vacas ergueram a cabeça, mas talentosas na arte de pastar imperturbavelmente, voltaram ao seu ofício.
- Masmu, Masmu! O que eu sei é que o poeta falava em dois caminhos que se separavam num bosque amarelado...
Masmu, ergueu os olhos, meneou a cabeça e seguiu no seu passo manso, mas firme. A velha ideia de ir além voltava obstinada a não arredar pé. Desceu até o regato e de longe ouvia a reprovação e as admoestações dos mais sábios da manada.
E bem ali, onde o caminho se repartia em dois, um deles bem conhecido - o mesmo velho caminho de seus ancestrais. O outro, menos trilhado, desconhecido e um tanto quanto perigoso, parou e pensou que não conhecia ninguém que o houvesse trilhado. Costumava sempre questionar os mais velhos sobre o que haveria além daquela trilha. Mas a resposta era a mesma: "Masmu, sua vaca tola! Ninguém nunca a percorreu, porque não há nada para se fazer lá! Nossa vida é aqui, nesses caminhos conhecidos e seguros. Aqui somos felizes e temos tudo de que necessitamos. Minha avó costumava contar-me que essa trilha era um caminho amaldiçoado por seres fantasmagóricos e malévolos. Meu avô costumava contar que um certo boi, chamado por todos de "boi doido", decidiu aventurar-se pela trilha amaldiçoada e que nunca mais voltara...”
Masmu sacudiu os pensamentos para longe, ouvidos moucos, coração quase a ponto de voar, embrenhou-se por entre as parcas árvores no entorno do caminho sem mais ouvir as vozes de ninguém. Deu um último sorriso-olhar para a seriema já distante , que espichou os olhos e soltou uma gargalhada de satisfação: “Corajosa, Masmu!”




Olga Martins e Anderson Taira

2 comentários:

  1. Uau! Lindo!!! Continua? O que terá acontecido a intrépida Masmu? :)

    ResponderExcluir
  2. Não sei, precisamos visitá-la, ou talvez consultar a seriema... Valeu, sifu!

    ResponderExcluir