quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Bernardo

A fase Belo Horizonte inscreveu em minha natureza sociável , mas quase sempre restrita,um capítulo indelével.Como tradução de marcas tão profundas de amizade ou melhor, de tão profundas amizades, não encontro a palavra exata e cá estou eu deslizando para dentro de um clichê.
Acho que em vez de ressaltar as qualidades dessa forma tão especial de amor que chamam por aí de amizade(Eu prefiro chamar de amor mesmo),prefiro contar algumas histórias que testemunharam o engendrar desse sentimento.

O primeiro

Aula de uma disciplina do ciclo básico na UFMG,muitas vozes, um sotaque marcante que àquela altura me incomodava muito e me fazia sentir muito mais saudade de casa.Minhas tentativas de aproximação não haviam sido tão bem sucedidas eu pensava:"Por que diabos eu tinha de estar ali?"
Havia deixado para trás companhias adoráveis, inteligentes e bem-humoradas e agora , além de ter de reconstruir meu espaço e meu círculo de amizades , tinha de fazê-lo em meio a uma porção de jovens com senso de competição acirrado.Estava cercada de pessoas que haviam acabado de ingressar na universidade e eram provenientes de cursos variados para cumprir o obrigatório ciclo básico : engenharia, filosofia, direito, letras, matemática...Eu que ali chegara através de transferência, precisava cumprir esse créditos e fui incluída nessa turma.
Havia gente de todos os tipos,mas em geral era um pessoal muito bonito,mais bonito ainda era um tal Bernardo que fazia o curso de direito e que certo dia se aproximou de mim perguntando se eu era de São Paulo.Confirmei e ele abriu um sorriso cheio de dentes alvos e simpatia singular."Adoro São Paulo!Adoro o povo de lá ! É uma gente tão pra frente,de mentalidade aberta." Por um instante,incomodada com aqueles dias de sentir-me como uma estranha no ninho, quase pensei que ele estava sendo irônico.Mas, não! Ele continuava ali com aquele sorrisão pregado na cara à espera de um acolhimento.Ri e antes que fizesse qualquer comentário completou :" Ah!Diferente do povo de Belo Horizonte que é tão provinciano."
Essa aproximação começou a desmanchar a nuvem negra que pesava sobre mim e com o passar dos dias, aquela presença foi me levando a outras.Bernardo era um rapaz muito inteligente.Eu sempre me impressionava com suas intervenções nas aulas de economia.Ela sabia tanto sobre  neoliberalismo e  globalização.                                                
Uma de suas grandes paixões era a música clássica e ele foi me ensinando algumas coisas e sempre se emocionava profundamente ao ouvir obras-primas que estavam contidas em inúmeros cds organizados alfabeticamente em uma imensa gaveta que ficava em seu quarto.Morava em um apartamento no bairro Santo Antônio,uma das ruas mais íngremes que eu conhecia naquela cidade.
Esse mineirinho de Curvelo colecionava histórias muito interessantes de família  e de amigos.Vivia sob a asa protetora de uma mãe que ainda lhe comprava roupas e ficou mais próximo de mim ,após um certo desapontamento amoroso. Ele confiava a mim seus segredos e eu confiava-lhe uma espécie de devoção.A partir do semestre seguinte nunca mais seríamos colegas de classe.Ele foi para a faculdade de direito e eu fiquei ali mesmo no campus para cursar as matérias que me faltavam para obter minha graduação em letras.
Mesmo assim, ele frequentava minha casa e era amigo da minha família.Socorria-me quando eu precisava.Chegou a passar de madrugada no hospital em que Mariana ficara internada por conta de uma apendicite.Eu ajudava-o a renovar o guarda-roupas, ouvia suas tristezas a qualquer hora e o acompanhava a alguns concertos musicais.
A partir do segundo semestre , conheci outras pessoas que vieram a se tornar fundamentais na minha vida e a elas apresentei meu amigo Bernardo,meu irmão Bernardo.Esses encontros deram início a uma grande mudança de paradigmas na vida desse moço e nossos laços se estreitaram para além da presença física.
Inesquecível foi o dia em que ele me chamou para assistirmos à ópera Carmen no Palácio das Artes.
libreto da ópera (1999)
A essa altura ele era meu grande incentivador no Flamenco e sabia o quanto eu gostava também da obra de Bizet.Assim que começou o intervalo ele me disse que queria me dar uma coisa e me entregou seu convite de formatura.Fiquei muito feliz e o abracei, parabenizando-o pela conquista e demonstrando meu orgulho por ele.
Pediu-me para folhear o convite.Folheei meio agitada ainda devido ao impacto da ópera.Ele insistiu , respirei e cheguei ainda displicente aos agradecimentos:

Ao ver meu nome ali,senti algo semelhante ao que devem sentir as personagens de filmes americanos quando o amado se ajoelha,lhes oferece uma caixinha e lhes propõe casamento.Exageros à parte, o fato é que eu não esperava tal demonstração de afeto.Eu sempre estive tão mais acostumada a oferecer do que a receber,a demonstrar do que assistir a alguma demonstração que isso me possibilita compreender o fato de tamanha comoção.
Na vida todas as pessoas precisariam experimentar esse tipo de afeto pelo menos uma vez.Escapar das redundâncias superficiais das relações, do desgaste da convivência e fazer emergir serenas pérolas.Ninguém deve se negar esse direito e ninguém deve esconder do outro a força e a intensidade dessas conexões afetivas.
Na rocha árdua das montanhas de Minas colhi alguns corações.Quentes, borbulhantes, perplexos,inseguros,intensos,imensos,inquietos, vorazes,felizes ou quase.Todos corações vibrantes e aprendizes nessa jornada que se chama vida.O coração de Bernardo também.






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