sexta-feira, 9 de maio de 2014

Minha mãe


                                                               
Minha mãe

     Cada um de nós tem sua própria narrativa em andamento.Não é possível reeditar o texto, como fazemos no word e apagar aquele trecho no qual faltou coerência ou no qual se permitiu escapar a coesão. Não tem jeito! No entanto, na progressão das linhas, vamos rearranjando as ideias, os sentimentos , criando novos discursos, ora diretos ora indiretos , mas quase sempre recheando as passagens com discursos indiretos livres. E pensamos... Como pensamos e repensamos e esquecemos e voltamos a repetir e reescrever sobre linhas já borradas.
    O tempo pretérito, implacável e perfeito não volta. Faz-se água. Faz-se rio tal qual afirmou Heráclito e nele não podemos mais pousar os pés, porque já não é mais o mesmo.
    Minha mãe é assim. Uma narrativa de enredo ambíguo, com duas histórias distintas e um protagonista que se confunde consigo próprio, porque a fuga de sua memória fez dela outra pessoa.Minha mãe é o colo-rio de Heráclito. Não poderei pousar minha cabeça cansada com o peso das frustrações naturais da existência no mesmo rio, porque embora seja o mesmo rio, suas águas de sabedoria escorreram para um não sei-onde. 
    Recolho suas mãos brancas e fragilizadas pelo tempo - e quantas histórias há naquelas mãos que se ergueram para o bem e para o mal - beijo-lhe as faces já murchas e os cabelos desbotados. Reconheço seu odor num mágico primitivismo, mas sua voz firme e imperativa, severa e ameaçadora só existe dentro da minha própria cabeça. Seus olhos outrora intensos e luzidios se espalham em mil olhares e não distingo o que perseguem. Vez por outra sorriem, vez por outra me encontram para tão breve perder-se no papel em branco.
     Minha mãe está e não está ali.Sua não-presença castiga mais que a velha cinta de couro sobre a pele. São inúmeras as vezes em que sinto a punição de não ser ouvida, de não ser mais a caçulinha protegida. Pura contradição. Aquela mulher de presença de aço com suas opiniões enrijecidas e inflexíveis verdades sabia abrir-se em ternuras e mimos. Enchia a casa de aromas e arrumações, mimava-me em seu colo e convidava-me a sentir-me amada quando ninguém mais no mundo poderia fazê-lo. Eu a temia e a amava com toda a força que a contradição pode assombrar.
     A história da dona Marlene, carinhosamente chamada de Nina, não pode ser reescrita, não lhe sobraram sonhos a cumprir, porque se existem estão em algum lugar inatingível. Não podemos ouvi-los... Restam linhas e páginas adiante apenas para alguns garranchos de vida. Ela não pode redigir sua própria narrativa, mas nós, seus filhos, netos e parentes próximos, lhe seguraremos as mãos como se faz com as pequenas crianças que aprendem os primeiros rabiscos.

Olga Martins
Os animais apareciam em ordem alfabética e não pareciam fazer o menor sentido.A primeira palavra era albatroz. Que diabos de bicho era aquele com esse nome pretensioso para quem estava começando a aprender a ler ? Havia também serelepe. Serelepe era do que minha mãe me chamava, de modo que esse bicho era ainda mais esquisito porque ele era eu!
Assim, as primeiras letras vieram já com uma complexidade simbólica muito inquietante e  se inscreveram no meu recém-criado mundo de palavras tomando posse de um espaço jamais substituído. Lembro-me de ambos e do traçado colorido das letras em fichas caprichosas, mas os vulgares elefantes, leões e gatos sumiram da minha memória.
Sabe a história da areia que vira pérola? Assim mesmo, causando incômodo , inquietação tornaram-se preciosas marcas no meu vocabulário, espécie de cartão de visitas de uma lista enorme que foi crescendo sem timidez.