domingo, 27 de outubro de 2013

Coisas que não se explicam

Quando já caminhamos um bom trecho do caminho, aquelas certezas vazias de substância começam a desmoronas bem diante de nós e o melhor de tudo é percebermos que elas não nos fazem mais falta.
Contudo, as certezas recheadas de certezas que se consolidam, vibram intensamente e a substância da felicidade se espalha por tudo.
Algumas dessas belas coisas da vida, com suas coincidências - vorazes coincidências que não são coincidências, mas que insistimos em chamá-las assim -  não se explicam. Não deveríamos perder nosso tempo tentando encontrar respostas para perguntas que nem foram feitas. Deixem estar. Essas mesmas coisas que nos tomam de assalto por suas surpresas, por suas delicadezas e incompreensíveis resoluções é que vindo de onde vêm, explicam muito dos sentidos perdidos Elas não devem ser o alvo de nossas indagações, mas são elas que agem, que atuam e que nos permitem compreender aquela porção de sentimentos que brotam e nos enchem de esplendor. E basta! O importante é reconhecermos a magia quando ela nos enreda...

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Ao dormir

Eu vi as asas de Hipnos baixarem sobre suas pálpebras lentas
enovelados, seus membros tornaram-se lassos e brandos contornos.
No farfalhar das asas o deus verteu o sono líquido,
Fundindo silêncio e sono.

Do lado de cá da grande cordilheira , tudo vi.
E ouvi desprender-se do cansaço seu corpo .
Sua respiração aprofundou-se em grutas
e ressonou serena , sem esforço sem drama.

Movia-se suave o desenho de seu flanco ,
quase montanha que aguarda o nascer do sol...
Do lado de lá, de mãos estendidas Morfeu  tomou -o num abraço
e em sua boca destilou gotas de sonho
- Até daqui a pouco!



Eternamente jovens

A brisa arrastou pra dentro de mim
Um gosto de tempo que foi
Sem nunca ter saído do lugar

Deslizando pela hora do dia
Provocou ondas de emoção atemporal
Refrescou o peito saudoso
Apenas levantando a fina camada
De anos que insistiram em criar distância
Ao longo das filhas do calendário

Que visão da existência essa
Redesenhando o carinho escondido
Numa gaveta empoeirada
Num cofre sem chave
Tanto muda
E muito muda
No entanto nada rouba
A vida do olhar
Carteira de identidade
Alheia aos homens que somos
Faíscam
Cintilam

Eternamente jovens 

domingo, 15 de setembro de 2013

Áquila


Olga Martins

Asas abertas e o vôo na amplidão
São lâminas as penas no ar
Espada de nobre guerreiro
Fio do destino a cortar
Flexível, fluido como água
Afiado metal

Tudo vêem os olhos agudos
Filtra luz a pupila ardente
Forja flecha de arqueiro
Certeira e incandescente
Íris de fogo
Não erra

Garras cravam sem hesitação
Pegada de aço implacável
Alcança o objetivo
Com firme determinação
Energia estável
Força da terra

Elementos em harmonia se tocam
Medita no mais alto monte
Segura, enraizada árvore,
Madeira ancestral
AQUILL contempla
O que está dentro de si,
Seu próprio

horizonte.

sábado, 7 de setembro de 2013

Dor de agora

Dor de agora
                                               Olga Martins

Ai , quem me dera o tempo todo branco
Arrastasse a franja do esquecimento
Feixe de estrias em ajuntamento
Varrendo toda a dor do esquerdo flanco

Fluxo de contínuo gotejamento
Areia  rubra de uma ampulheta
Minha polpa de amargo pensamento
Que na tortura torpe se deleita

Quem dera os líquidos globos secassem
Então sementes de aurora guardadas
Sem vento , sem medo, sem dó ficassem

Por frequentes ondas repetitivas
Pulsar do peito  por elas molhadas

De toda pena minha alma lavassem....

Estátua de São Francisco

ESTÁTUA DE SÃO FRANCISCO

São Francisco no alto do pedestal
Tem ao seu redor
Pequeninas fantasias do reino animal
Serenas , cordiais e pacíficas.

Aos pés do santo murmura a fonte
Água sonolenta
Que se espalha em espelho
                Serena , cordial e pacífica.

O olho raso da líquida flor
Pétala a pétala se abre
É lágrima de devoção
                Serena , cordial e pacífica.

O rumor borbulhante celestial
Engolido pelas rochas
Encaixadas umas nas outras
Irmãzinhas do reino mineral em prece...

Sem parar , a água brota e rebrota
Filetes. Pausa. Oração.
Seriam lágrimas do santo homem
Rolando entre seixos, penas e fé?
Gargarejo divino
Gorjeio de nuvens
Gratidão humilde
Pelos seres da criação

                Serenos , cordiais e pacíficos.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Masmu

Há certas coisas que se enxerga com o coração apenas. Masmu existe e dois corações a quatro mãos contam essa pequena história...




Masmu

Masmu é uma vaca curiosa e interessante que habita o alto das montanhas, lugar cheio de vegetação rasteira e ondulações no relevo por onde passam frequentemente motoqueiros fazendo trilhas. Nos arredores, Masmu desconhece, mas há quilômetros de canaviais a perder de vista e um mundo vasto cheio de possibilidades.
Ela não mora sozinha, há várias outras vacas e bois com toda sorte de coloração de pele, no entanto é ela a que se avista a longa distância , pois sua pelagem é escura salpicada por manchas brancas.
            Todos os dias, ela e seus companheiros se lançam a antiga arte de pastar percorrem um bom trecho da região onde habitam, sem nunca abusar da sorte. Não vagueiam por aí ao Deus dará sob pena de não voltarem a tempo para o local onde se recolhem quando o sol resolve deixá-los.
Masmu olha para todos os lados e ergue a cabeça para compreender a agitação no céu , enquanto as andorinhas bailam e se delicia com a coreografia das velozes figurinhas. Suas companheiras não compreendem essa perda de tempo, porque o pasto está aos pés. Contudo, os comentários maliciosos não incomodam o ruminar de nuvens da vaquinha desajustada.
Depois de se divertir com as andorinhas, estica os olhos para os urubus tão leves, suspensos em suas cordas de circo, deslizando em espirais pelo vasto céu. O coração de Masmu parece encher-se de leveza também , ela se move suavemente  e seus cascos resvalam sutilmente pelo capim.
Está só e não sente desejo de seguir pastando como sempre o faz, sente-se diferente e até poderia voar, se asas tivesse. Observa a manada no seu repetitivo ritual, nos gestos ensaiados e vazios da mastigação do dia.
Enquanto vagueia em seus pensamentos, não sente a aproximação da esperta seriema que lhe arregala um par de olhos azuis e estica as canelas finas para parecer mais alta:
-Oi!
-Olá, seriema! Quase me pregas um susto!
- Desculpe-me, é que a vi assim tão desconcertada a olhar para o céu, que fiquei curiosa. O que há?
- Nada! Apenas não me sinto tão feliz em pastar somente, em repetir o gesto cotidiano de pastar, olhando apenas para o chão. Encheu-me de alegrias observar essas aves desenhando no céu.
- Ah! Sim! É mesmo uma beleza!
- E tu, por que não voas?
- Por que não está em mim voar, a não ser que seja muito necessário. Prefiro vasculhar por aqui e ali, sentir meus pés firmes na terra.
- Eu voaria se pudesse...
- E não o estás fazendo de certo modo?
-Hummm – e soltou um suspiro-mugido não muito convencida disso.
- Sabe, Masmu, outro dia, um desses humanos que circulam por aqui leu um poema em voz alta e eu, curiosa que só, ouvi e guardei alguma coisa, falava da escolha de um caminho...
- Caminho?
- Talvez , você não possa por ora voar, mas pode escolher o caminho menos trilhado, como diz o poema...
-E o que mais diz esse poema?
A esperta seriema, conhecedora de sonhos ,soltou um típico riso que ecoou por todo o vale. Adiante, algumas vacas ergueram a cabeça, mas talentosas na arte de pastar imperturbavelmente, voltaram ao seu ofício.
- Masmu, Masmu! O que eu sei é que o poeta falava em dois caminhos que se separavam num bosque amarelado...
Masmu, ergueu os olhos, meneou a cabeça e seguiu no seu passo manso, mas firme. A velha ideia de ir além voltava obstinada a não arredar pé. Desceu até o regato e de longe ouvia a reprovação e as admoestações dos mais sábios da manada.
E bem ali, onde o caminho se repartia em dois, um deles bem conhecido - o mesmo velho caminho de seus ancestrais. O outro, menos trilhado, desconhecido e um tanto quanto perigoso, parou e pensou que não conhecia ninguém que o houvesse trilhado. Costumava sempre questionar os mais velhos sobre o que haveria além daquela trilha. Mas a resposta era a mesma: "Masmu, sua vaca tola! Ninguém nunca a percorreu, porque não há nada para se fazer lá! Nossa vida é aqui, nesses caminhos conhecidos e seguros. Aqui somos felizes e temos tudo de que necessitamos. Minha avó costumava contar-me que essa trilha era um caminho amaldiçoado por seres fantasmagóricos e malévolos. Meu avô costumava contar que um certo boi, chamado por todos de "boi doido", decidiu aventurar-se pela trilha amaldiçoada e que nunca mais voltara...”
Masmu sacudiu os pensamentos para longe, ouvidos moucos, coração quase a ponto de voar, embrenhou-se por entre as parcas árvores no entorno do caminho sem mais ouvir as vozes de ninguém. Deu um último sorriso-olhar para a seriema já distante , que espichou os olhos e soltou uma gargalhada de satisfação: “Corajosa, Masmu!”




Olga Martins e Anderson Taira

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O poema por vir








Eu tenho nas mãos um poema por vir
que vai de mansinho testando suas asas,
buscando fôlego para escapar à rima convencional,
Ele desliza na tinta da caneta,
mas ao sonhar,
não faz mais do que girar no carrossel.
Quer tanto voar, mas patina.
Eu tenho nas mãos um poema que se encolhe no canto
dobrando os joelhos e olhando para dentro.
Ele recolhe as asas num instante poeirento
e bate a cabeça em palavras barulhentas
que o ensurdecem.
Eu tenho aqui em minhas mãos um poema que quer tanto dizer
tanto, tanto...
mas fez do silêncio seu canto



sábado, 10 de agosto de 2013

Olhos de ver, olhos de sentir

Pequenas coisas mágicas acontecem a todo momento. Passamos displicentes  pela maioria delas com os olhos sujos, como diria Otto Lara Resende.
Muitas vezes essas insignificâncias são mensagens e só as leem aqueles que estiverem com o coração conectado, presente em cada olhar.


sábado, 27 de julho de 2013

Chamado

Ouvi a voz que chamava
Fechei os olhos , enxerguei a voz
O nome pronunciado sílaba por cima era feminino
A voz  que chamava era feminina
Ao fechar os olhos acordei
Ao acordar
Não sabia se sonhava

Olga Martins

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Morador de rua

Dia desses em visita aos meus amigos em Belo Horizonte, Tony queria entregar dois edredons para algum morador de rua, mas receava fazê-lo sozinho. Eu e Bernardo o acompanhamos...

Mil espelhos em estilhaços me atingiram
quando o globo do olho - todo o planeta e seus satélites
buscou os meus no absurdo da noite fria
Eram olhos de indagação, indignação e medo
tudo ao mesmo tempo circulando
a lágrima suspensa, por vir...
eternamente anunciada e
solidificada na pedra-coração-sobrevivência
Senti terror, mas qual
não sentiu ele também?
Na passagem do tufão
retraí o passo e a boca torta de susto
pendurou uma placa que dizia:
- Sinta menos frio, meu irmão.
E no mesmo segundo
o que era uma coisa
virou outra sem nunca deixar de ser
e o que era medo
gratidão – mas nunca sem suspeitar
O mundo todo se encolheu
se dobrou, se curvou e veio parar aqui dentro
no lugar onde brotam as nuvens fazedoras de lágrimas
A noite era fria
e choveram indagações
e indignação

domingo, 7 de julho de 2013

O fio de Ariadne

     Quando Ariadne estendeu as mãos com o grande novelo para Teseu, agachei e fixei o olhar naquele gesto.O fio grosseiro assinalava uma escrita que eu ainda estava por desvendar e a jovem confiava tanto em seu plano que infundiu no jovem herói a certeza de que ele traria a liberdade para os jovens cretenses.
Quando ele voltou vitorioso do labirinto para o abraço de sua amada, a comemoração se estendeu por centenas de outros abraços.Não haveria mais nenhum sacrifício naquele local, pois o Minotauro estava derrotado.
     Quando a multidão dispersou,alguns curiosos permaneciam incrédulo, com ouvidos atentos para certificarem-se de que o o urro do monstro havia se calado pela eternidade afora. No entanto, o que eu queria estava ali esquecido no chão.Recolhi o emaranhado do chão e me recostei junto a uma rocha perto da boca do labirinto. 
     A tarde derretia o dia como o sol um dia fizera com a cera das asas de Ícaro.Com paciência extremada desembaracei as fibras e amarrei intuitivamente uma das pontas do novelo em meu coração que a absorveu.O restante enrolei em minha mãos e fiz uma grande bola compacta.
     Iniciei assim uma caminhada por entre as muralhas secretas.Com passos tímidos, inseguros me lancei adiante, escolhendo passagens, desvios.Depois segui de olhos fechados.
     Meus medos afiavam as garras nas paredes e de longe eu ouvia o arrepio da rocha.Seus bicos carniceiros arrancavam o fígado do tempo e suas asas de negra navalha cegavam. Eu caminhava e ia desenrolando o novelo enquanto a linha se enrolava iluminada no meu coração.
     E quanto mais me aproximava do vórtice, mais forte sentia o hálito paralisante que se espalhava no ar.A cada passada a ameaça sob forma de ronco sistemáticos entremeado por estalidos metálicos.
     Meu coração quase emperrou e a linha desceu numa parábola entre minhas mãos e o peito.O medo rondava.
    Respirei profundamente e a linha voltou a se enrolar.Se a carne quase sangrava, o peito aquecia-se e ali estávamos eu , meus medos e os ponteiros do relógio.Abri os olhos e não mais havia muros, apenas um grande espelho diante de mim.
Olga Martins