sábado, 24 de março de 2012

O coração da casa

A bomba puxava a água do poço  e enchia a caixa que ficava sobre o telhado. O som era alto e ritmado e rasgava as horas do começo da semana. Essa foi minha primeira poesia. Brotava das linhas da realidade cotidiana com cheiro e som de coisa comum.
O poço  ficava nos fundos da casa e era a minha fantasia cheia de encantos e temores. Ninguém compreendia o tamanho da angústia e prazer que me inebriavam quando vinha a ameaça : Cuidado! Tem jacaré lá dentro! Se você chegar  na beiradinha, eles vão pegar você. Que ameaça desesperadoramente atraente! Eu sentia as entranhas estremecerem de pavor e de curiosidade. Quase perdia os sentidos quando a tampa – sempre muito protegida para evitar acidentes – era removida. Um torpor me tomava quando minhas narinas eram invadidas pelo cheiro de tijolos úmidos. Minha mãe permitia , muito raramente, e sempre com alguém me segurando , que eu me debruçasse sobre a estrutura de cimento e olhasse dentro daquela abertura mágica. Nunca vi jacaré algum, mas nunca duvidei de que eles estivessem ali.
Devo ter sonhado com os monstros de dentes afiados que eu costumava olhar intrigada por intermináveis minutos todas as vezes que ia ao zoológico e certamente devo ter molhado a cama algumas vezes.
Enquanto a sinfonia da bomba pulsava, a casa ficava viva com aquele coração engraxado. A porta da cozinha dava bem em frente à estrutura de cimento que circundava a boca do poço. Era ali que eu brincava. Tudo era cimentado, aquele cimento queimado que deixava o contrapiso lisinho. Depois de varrido e lavado eu podia sentar, deitar e rolar. A vida era cheia de ruídos e cheiros que criavam a sensação de pertencimento que nunca mais senti depois de crescida.
Havia as conversas à mesa da cozinha em torno do café e proibidas para crianças, no caso, eu. A voz da minha mãe em cochichos e comentários que eu espichava a orelha para entender, só para ter a certeza de que não eram sobre mim, sobre minhas artes e possíveis castigos. Havia também os bate-bocas entre minha mãe e meu pai , certamente havia, mas  talvez por negação não me lembro de nenhum . Talvez eu trocasse as vozes que ameaçavam minha inocência infantil pelo som da bomba, pelo coração da casa mantendo viva a família.
Mas um dia a SABESP trouxe esgoto e água encanada para a nossa rua e calou a bomba. O coração da família parou de bater e meu pai saiu pelo portão carregando uma mala.

A boneca de porcelana

A Boneca de Porcelana
Cecília Coutinho

Um dia, comprando um presente para minha filha, eu entrei em uma loja e percebi uma boneca antiga de porcelana igual a que por muitos tempo fez parte da minha infância. De repente fui parar anos atrás. Era como se estivesse vivendo meus sete anos novamente.
A boneca era inteira de porcelana, pezinhos com todos os dedinhos e os olhos azuis como o céu, a boquinha rosa clara brilhante e os cabelos marrons como a madeira polida da minha penteadeira onde ela ficava. A boneca era muito especial porque eu a tinha ganhado da minha tia ,que era muito querida por todos, mas que infelizmente hoje não está mais aqui conosco.
A boneca foi muito importante para mim. Na minha infância eu conversava com ela quase todos os dias e achava que ela sempre me entendia. Será não me entendia mesmo?
Um dia, quando  tinha oito anos , eu estava fazendo um lanche e ouvi um barulho vindo  do meu quarto. A minha irmãzinha tinha quebrado a minha boneca. Não pude acreditar. Foi tanta malvadeza que eu chorei. Eu nunca pensei que uma garotinha de seis anos fosse capaz de fazer isso comigo afinal eu nunca fiz nada de mal para ela. Até tinha dividido todos os meus brinquedos com a minha irmã, menos a minha boneca de porcelana.  
Mas isso não ia ficar assim. Quando a minha mãe chegou e me viu chorando, perguntou assustada, tentando entender o que tinha acontecido e eu disse a ela que minha irmã tinha quebrado minha boneca de porcelana. Fiquei vermelha de raiva quando minha irmã disse que tinha sido  sem querer, que a boneca cai da sua mão e se espatifou no chão. O fato de ter sido um acidente não se justificava e  eu expliquei para minha mãe que eu já a havia proibido de brincar com a boneca. Por causa disso minha irmã ficou de castigo.
Hoje eu entendo que tenha caído sem querer.
De qualquer forma eu estava tão feliz de ter encontrado uma boneca igual àquela que resolvi comprá-la  para minha filha e ela adorou.

Texto de aluna

sexta-feira, 2 de março de 2012

Flores brancas para Evandro

Comprei pequenas rosas brancas.Elas haviam acabado de chegar no mercado e acho que fui a primeira pessoa a ser atraída por elas.Um buquê delicado,sem excessos,cheio de botões entalhados com a perfeição que apenas a mãe-natureza é capaz de produzir.Dispus galho por galho no vaso de murano vermelho e acrescentei água bem fria.Enquanto o nível do líquido fresco se elevava,meu pensamento ascendia feito fumaça de incenso e não hesitei em carinhosamente afirmar que elas eram dedicadas ao Evandro.Uma conexão sorridente entre meu coração saudoso e esse menino bonito que há três anos - amanhã fará exatamente três anos - precisou encerrar sua jornada aqui neste planeta se estabeleceu.Sem palavras,sem lógica,apenas o batimento cardíaco ligeiramente acelerado e o gosto de uma saudade sem amargor.As rosas sorriram também e aqueceram o momento.
Paulinho da viola, sambista e compositor costuma falar que o tempo dele é o presente,que ele não vive no passado,mas que o passado habita nele.Não encontro nenhuma definição que esbarre nessa ideia ou que seja capaz de ,sem sentimentalismo barato,expressar essa imensidade quase oceânica de sensações.De fato, não me lembro do que já passou com a agonia de quem gostaria de puxar a linha do tempo, enovelá-la para fiá-la do ponto que desejar.Eu me lembro das pessoas, dos lugares,das emoções, porque elas estão exatamente aqui, constitutivas que são do enredamento exato que me teceu.
As flores para o Evandro não são para chorar a saudade - e ela existe - , são , de fato, para agradecer à pessoa que tanto amei - e amo - por sua presença em mim.