quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Novelos

Pensando no emaranhado na vida...




Quando o sol chega a doer assim nos olhos  e o que é branco torna-se o mais incômodo , Maralúcia  troca as linhas , colocando as mais escuras por cima do cestinho de costura . As linhas mais claras , prefere ofuscá-las . Com dedos maliciosos  apalpa os pequenos novelos macios e os enfia por debaixo.Sufocadinhos ali, quem sabe , consiga esconder o que a incomoda.
Ponto por ponto, estabelece uma regra cicatrizante  de tramas aleatórias,seu tapete mágico que a faz deslizar pelas horas da vida e  pelas horas do sonho,nós.
Enquanto mexe no seu cestinho a procura de novos novelos, as provocantes cores claras irrompem . É um susto só , tanto que a agulha fere-lhe a ponta do dedo e uma vazante maré inunda colo e olhos . Sente sufocar-se em traças errantes, errôneas que ainda viriam roer o tapete e ruir o pensamento.
Corre para torneira em busca de um fio de água capaz de  misturar-se ao sangue até que os dois em conjunção se transformem num fluxo único e então submetido já à cristalinidade , sangue  seja só um pontinho.Pontinho mal dado , fácil de desmanchar.
É um quase nada , mas como dói!Pior que isso é saber que lá estão os novelinhos angelicais e serenos , cheios de justificativas.Tão honestos todos eles ...
Maralúcia pouco se importa com a nuances possíveis, quer a morte incessante da ameaça. Seus olhos doem mais que o dedo ferido. Não quer estrelas saltitando nos céus, nem asa de anjo qualquer a cobrir protetora. Que se danem as margaridinhas do bordado e as pombinhas de núpcias! Quer vingança dos prováveis nós que interrompam sua passagem.
Os calos dos dedos nem incomodam mais, são sementes prestes a germinar sua obra, seu cansaço.
Num arroubo, lança mão de uma tesoura e se arremessa sobre o cesto ; uma ira tamanha sobre  os novelos clarinhos. Rasga-os  com dentes e fúria , descabela-se, brada.
Dias e noite num único golpe.
Suores aflitivos e um gesto impossível de se conter. A morte súbita da razão primária, a vazão de milhões de metros cúbicos de angústia . A danação das escolhas. A pior de todas  as escolhas com suas unhas a escavar no tempo as conseqüências  e estas a pingarem na torneira mal fechada , a tramarem no tapete escorregadio , a ventilarem nas janelas entreabertas , a ecoarem no latido do cão e, principalmente a se desenrolarem infinitamente nos novelos de lã .
Maralúcia  ama cada detalhe.
Maralúcia odeia cada detalhe quando se olha no espelho. Odeia as fibras pois com elas tece a vida diária de um bordado imprevisível em sua regra.


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