terça-feira, 9 de novembro de 2010

Bailarina espanhola

Ta Tchica  Ta Tchica Ta Tchica pá pá

 Pá Ta Tchica pá  Ta Tchica pá Ta tchica pá

Tchica pápá pá  Tchica pápá pá

As madeiras do assoalho cantavam com a energia dos golpes secos.Algumas repetições em coro e então um par de pés anunciava uma nova sequência.Primeiro lentamente e bem marcada.Uma, duas, três vezes seguidas por vários outros pares de pés, acelerando de tal modo que os contornos do som de cada batida iam sumindo a tal ponto de se engolirem e criarem apenas música.
A coisa toda ocorria no andar de cima do sobrado em frente a praça.A algazarra das crianças que se esparramavam pela área de lazer e a fofoca das babás tornavam secundárias.
Surgiam notas de um piano clássico que despertava uma contagem firme na voz de mulher.Às vezes um curto silêncio irrompia, mas tão breve que parecia inexistir e a contava recomeçava,ora sobrepondo-se,ora sendo encoberta por outras vozes, outra contagem.De fora era curioso notar piano e guitarra flamenca serpenteando pelo bairro e invadindo a grama e as pedras da praça.As pessoas no seu ritmo , se ouviam não prestavam atenção.
O que de fato não podia compreender aquela mulher de cabelos escuros e cacheados é que todas as vezes em que passava por ali -talvez condicionara-se a escolher aquele horário - percebia as mãos suadas serem agarradas pelo ritmo, loucas de febre.Sentia a voz cigana beliscar-lhe o sangue como se fosse possível deixá-lo mais vermelho e mais denso.Flamejante sangue.
Em uma dessas vezes não pode mais resistir e procurou esconder esse incêndio na alma, embora não pudesse apagar as faíscas que saíam dos olhos, quando adentrou a recepção da escola de dança.Convidada a ver e não apenas a ver, mas a vivenciar o aquecimento da aula, enxergou a mágica e a quis para si.
Não pode dormir bem naquela noite, dada a euforia semelhante àquela que causavam os reencontros surpreendentes.
Teve que fazer uma sangria nas emoções.Lembrou-se de Rilke e localizou na estante um exemplar que comprar oito anos antes quando ainda morava em São Paulo.Leu:

BAILARINA ESPANHOLA

Como um palito de fósforo na mão,alvar
antes de ,aceso,estender suas línguas ardentes
para todos os lados - a dança circular
de junto do espectador começa a alargar
seus círculos,clara,célere e cálida sempre

E eis que de súbito se faz chama a dança inteira.

Com o olhar, a bailarina inflama a cabeleira
e,com arte ousada, de um só golpe distende o
seu vestido todo num rodopiar de incêndio
do qual, serpentes,em desnudez e susto vão
surgir os braços despertos, num bater de mãos.

Depois, como se fosse pouco, ela junta o fogo
e o atira,num gesto arrogo,
repentino,imperioso,e contempla,enlevada,
ele estorcer-se no chão sempre sem perder nada
da sua fúria,numa recusa de apagar-se.

Triunfante e segura,com um sorriso amável,
ela saúda então,ergue o rosto e sem disfarce
o esmaga com seus pezinhos implacáveis.

Quis ler Lorca também.A excitação cedeu ao cansaço da hora avançada e sonhou à moda de Saura.Ficou face a face com o garboso Antonio Gades e enfrentou o olhar implacável de Carmen,ouvindo a voz do seu fantástico professor de história do 2º ano como plano a narrar os episódios e feitos mouros na península ibérica.
Nunca mais acordou.


Esse post faz parte de uma das minhas espetaculares experiências em Belo Horizonte.Foi através da professora Cássia Rodriguez que travei contato com o Flamenco na Academia de Dança Meia-ponta.O impacto foi muito marcante , muito próximo do que descrevi no texto acima.Depois Cassia engravidou, partiu para novos projetos e acabei por descobrir que na Faculdade de Educação Física da UFMG, por meio dos cursos de extensão oferecidos,eu poderia voltar a praticar essa dança tão mágica para mim.Eu era estudante do curso de Letras da UFMG no período da manhã e assim que minhas aulas terminavam,eu corria para o ponto de ônibus e pegava o circular que me levava até o prédio da Educação Física que ficava na outra extremidade do campus.Conheci pessoas incríveis lá e desenvolvi um pouquinho mais meus conhecimentos sobre Flamenco.No entanto, não houve uma regularidade nesse processo.O curso sempre recebia muita gente nova .Grande parte ia desistindo ao longo do ano,mas no ano seguinte recomeçava tudo , pois este era o objetivo do CENEX(acho que era assim que se chamavam os cursos de extensão oferecidos pela universidade).
Cássia me indicou uma professora especializadíssima em uma escola de dança de um bairro nobre de BH,fui para lá.As aulas eram ministradas com um guitarrista.Coisa de primeira mesmo.A turma já estava avançada e senti certa dificuldade em me adaptar.Desanimei um pouco porque diferentemente das experiências anteriores eu não sentia o pulsar da energia que me atraíra para essa arte, embora as falas da professora fossem muito interessantes,ela falava sobre a energia da Terra nos puxando para baixo e nos orientava a mover da cintura para baixo com intensidade e força.Dizia que nossos braços,nossas mãos por outro lado deviam ser leves como se estivessem suspensos por fios invisíveis,dependentes da energia dos céus.Curioso é que não me lembro do nome dela.Era uma mulher que escapava do estereótipo da gitana.Tinha cabelos curtos permeados por reflexos loiros de salão de beleza.Havia acabado de retornar da Europa com a bagagem cheia do que havia de mais recente a respeito do baile flamenco.
Eu não me encaixei.Não fazia parte daquele grupo de moças e meu sangue parou de cantar.Descobri que estava grávida e acho que eu mesma acreditei que este motivo deveria me afastar dos tablados.Nunca mais dancei novamente.

6 comentários:

  1. Acho que você deveria voltar a dançar!!! Faz bem para o corpo, e melhor ainda para a alma!!!!
    Beijos
    Paulinha

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  2. Que lindaaaa!!!!OU vc volta a dançar ou boicotamos seu blog!!rsrs

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  3. You are so beautiful, como diria Chris de Burgh.

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  4. Ahauahuha! Conselhos, ameaça e elogios... olé!

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