domingo, 3 de abril de 2011

Grilos

Faz mais de dez anos que escrevi esse conto.Ele ficou dormindo quietinho.Agora eu o resgatei e sei o que mudaria nele,mas não mudei nada.Esse fica como nasceu.Imperfeito como eu.

Naquela tarde o tempo escorreu facilmente entre os dedos.O homem molhou o jardim e depois alinhando os velhos chinelos religiosamente do lado direito da cama  , deixou a porta aberta : convite aos grilos ,que à vontade, acomodaram-se sobre o lençol .
Na manhã seguinte, por engano, entregaram um jornal na casa errada. Definitivamente iria aprender a ler.
Tendo no peito aquela sensação imprecisa, uma certa necessidade de buscar no dia qualquer calor vira a idade chegar cedo , cedo demais ; antes mesmo que tivesse tempo para pensar na época de recolher-se ao leito.
Tendo tempo de sobra , ficava desconcertado sem saber muito bem o que fazer com aquelas horas em demasia , alternava-as entre afazeres corriqueiros ; consertar uma torneira , arrancar tufos de mato do quintal , plantar alguma semente .
Confuso queria programar-se , organizar-se na suspeita tumultuada da urgência do tempo. Agora sim quem sabe poderia juntar as primeiras letras e ler...ler como tanta gente vivia fazendo. Não que ele não soubesse algumas palavras, sabia como ele mesmo dizia, divulgar placas , nomes , coisas que não vêm ao caso agora .Relevante é saber que  lhe parecia tão bonito ver as pessoas abrindo as páginas cinzentas dos periódicos ... parecia tão importante.  Ali sobre aquele universo diariamente renovado ver pessoas juntando letras , notícias e horas .
Havia dias  em que se animava realizando mil tarefas .Encadeadas , profícuas encobriam o tiquetaquear do relógio . Esquecia-se de comer.
Contudo alguns dias , e eram muitos , cansava-se só de saber que as horas rolariam grossas .Impacientando-se, começava e não dava cabo de nada. Pensava em fazer algo e acabava arranjando obstáculos . De repente ,  tudo parecia perfeitamente adiável . Então , nesses dias preguiçosos aquela saudade era o quarto, a sala e a cozinha . Sentava-se num velho banquinho que tinha feito há séculos .
Para quem o teria feito ? Não conseguia se lembrar , mas o banquinho permanecia resistente e alheio aos acontecimentos . Imóvel. O velho lhe confiava a tarefa de suportar o peso da memória além daquele corpo pouco confortável e quase irreconhecível que sentava mudo .
            Ali diante das roseiras da sua amada Júlia , ele  e o banquinho ainda podiam vê-la cuidando de cada detalhe daquele jardim,  vibrava ao vê-la removendo tiriricas , regando todas as plantas, podando , eliminando pragas e sobretudo cantarolando “As rosas não falam”. Sempre que Júlia terminava a canção comentava sozinha esfregando as mãos no avental : “Quem disse que não falam?” Soltava um riso frouxo e completava : “Falam e sobretudo escutam!”
            O olhos captavam a cena  naqueles tempos em que o viço dos primeiros anos de casados pulsava.  Divertiam-se .
As mãos costumavam interromper a concentração da esposa , arrancando uma flor qualquer e colocando-a nos cabelos mal presos . Rodopiavam como se valsassem . Com o tempo Júlia foi perdendo o encanto , ficando  , aos poucos ,  incomodada com a brincadeira do marido . Esbravejando , batia as mãos em seus ombros .Que se aquietasse ! Ele achava graça , sorria, beijava-lhe a testa   e a soltava  aos cuidados do dia . Nunca soube o quanto a amada   irritava-se .
            O zelo de Júlia pelo jardim jamais sofreu qualquer deslize , nem mesmo quando os filhos vieram . O marido achava excessivo aquele desvelo  , mas aceitava e guardava nos bolsos ( furados decerto ) , qualquer reprovação .
            Os filhos cresceram e um certo silêncio foi preenchendo a rotina . Júlia continuava a cultivar suas flores , a cantarolar , porém o marido cultivava preocupações e temores .  Passou a não notá-la ali entre tantas flores. Nem ela percebia-se , às vezes confundia-se com as rosas , suas cores e seu silêncio. Numa manhã orvalhada também desabrochou .
            Agora , sentado naquele banquinho tristonho num acender de luzes perdia aquela lembrança , rolava com as pontas dos dedos algumas pedrinhas e seguia a trilha das formigas por minutos intermináveis sob o sol quente , sem nunca saber em qual das rosas  sua amada voltaria a desabrochar. As cores causavam-lhe uma certa confusão nos olhos . Se pudesse ler um jornal  ,  não ficaria ali lendo e relendo o mesmo livro cheio de páginas perdidas .
            Fim de fevereiro e a promessa  cumprida de chuvas o aturdia . Tinha de ver o jardim através da janela . O vidro embaçado  , quase todas as tardes . O banquinho girava num vazio . Março terminando aos poucos , aos pouquinhos , também a chuva .
            Não recebia visitas , nem mesmo de parentes. O cachorro , amigo dos últimos anos já estava enterrado .
            Depois das chuvas o jardim perdeu-se no mato , porém os dias de desânimo eram cada vez mais freqüentes . Júlia , com certeza devia estar zangada ,
            O velho colocou novamente o banquinho diante das rosas . O chão úmido, deixava as formigas de fora do cenário . Por pouco tempo decerto . Roçou a pela branca de uma rosa e o calor intenso permitiu-lhe sentir os aromas da terra ascenderem no ar . A tristeza recendeu.
O jardim encheu-se de grilos  . Havia tantos ! Saltando de um lado para o outro criavam um mosaico estranho e movediço .
Levantando-se do pequeno banco , Antenor caminhou até o portão ,  triste figura . Olhou para a antiga rua pela qual passara inúmeras vezes , a velha rua que sempre lhe trouxera de volta para casa . Nenhuma criança , nenhum vizinho , nenhum grilo do lado de lá . Todos os portões fechados como se o destino tivesse encerrado tudo num único pensamento . Solitária , cada coisa estava em seu silêncio , exceto os grilos ...

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