quarta-feira, 30 de março de 2011

Rito de passagem

Vista do lado de fora ela era uma imagem de ficção científica. Aquela cadeira  muito mais do que um objeto de trabalho  era incrível arquitetura em minha imaginação. Ela podia girar , suspender e abaixar quem nela estivesse sentado e eu ficava imaginando que aventuras poderiam ser narradas por aqueles que a usavam. Desejei sentir o que sentiam.
Toda vez que eu tinha que passar em frente à barbearia  de seu Onofre , diminuía o passo como se pudesse vivenciar uma narrativa fantástica que coubesse inteirinha naquela fração de tempo  . Meus olhos captavam apenas a cadeira, tudo o mais era subtraído da cena naquele instante. Ela então passava a ser muito maior do que realmente era e reluzia como talvez nunca tivesse reluzido desde que saíra da fábrica.
Às vezes me surpreendia vendo-a descolar do chão, ascendendo velozmente, rompendo o teto da velha barbearia; um foguete em pleno curso.
 Numa tarde meio chuvosa, escondido entre o poste e o guarda-chuva preto que trazia nas mãos, vi a lâmina aguda preparar-se para iniciar uma lobotomia; os dedos longos do alienígena iam e vinham  zipzapeantes ...
_ Ô menino, estás a sonhar acordado?!
Desfeito o laço que me atava à fantasia pus-me a correr rua abaixo lívido e envergonhado. Comigo iam meus cachinhos loiros que pendiam feito as roupas dos varais: promessa que mãe fizera.
_ Logo você vai para a escola, dizia minha querida mamãe enquanto escovava meus cabelos molhados e que escorriam entre o liso de seus dedos.
_ Vou aprender a ler? Vou aprender a escrever como meu irmão?
_ Sim, vai deixar de ser um menininho, pra ser o meu filho-doutor! Graças à virgem você está saudável!
Aquelas frases soaram na minha cabeça como uma trombeta anunciadora. Tive medo de que rissem dos meus cachos. Não suportaria as chacotas dos colegas e já podia prever as brigas no pátio e os castigos. A tão sonhada escola me causava um bolo no estômago cujos ingredientes eram desejo e dúvida...
O cheiro doce espalhou-se pelo ar já muito cedo e, na casa havia uma movimentação barulhenta; sons metálicos de talheres e sons vítreos das xícaras, canecas e copos.Nada de diferente, era assim todo santo dia e todo dia santo . Com a conversa miúda crescendo conforme a casa ia acordando, não demorou para que eu, o menor da casa ,  me juntasse ao burburinho matutino com hálito fresco de dentes escovados e olhos ainda apertadinhos . Tomei meu café misturado ao leite quente, comi um pãozinho. Como de costume, pouco falei, sequer resmunguei qualquer coisa. De certo modo, eu já previa que algo diferente estava por preencher as horas daquele dia, quem sabe da minha pequena vida inteira...
 Mamãe tomou-me a mão com delicadeza e silêncio apanhou a carteira de couro esgarçado, beijou-me a testa e caminhamos. Nada perguntei, embora minha língua coçasse dentro da boca. Se ela nada falava, também eu nada falaria. Eu podia tudo na vida, menos desapontá-la. Do fundo do meu coração percebi que aquele nosso conjunto de gestos tácitos era uma oração. Eu não podia pecar.
Paramos diante da barbearia. Meu coração batia escancaradamente; morrera o silêncio:
_ Bom dia seu Onofre!
_ Dia!
_ O senhor tá ocupado?
_ Nada! Então vai ser hoje o dia?
_Cumpri o que prometi. Minha dívida com a santa está paga. O menino é seu!
Aquela declaração continha muitas sutilezas e eu podia sentir a navalha percorrendo minha espinha.
Fui erguido pelas mãos cabeludas do velho homem e então acomodado na cadeira mágica, fechei os olhos, engoli o choro e fui celebrado com um tapinha no cocuruto. Meus pés largados ao nada ...
Abri os olhos: a cadeira não voou, nem atravessou o telhado como eu esperava, mas ergueu-se em pequenos solavancos rangentes.   O metal que a abraçava estava desgastado e seu revestimento puído. Respirei fundo e sorvi aquele momento.
As mãos ágeis do barbeiro desferiram o primeiro golpe e eu quase pude ouvir a lamentação do cacho esvoaçante antes que ele se entregasse ao chão.
 Um a um, os inocentes cachos foram-se então. Ergui meus olhos e o espelho me revelou uma figura com a qual eu deveria me acostumar  .
Uma borrifada de água, a tesoura, a navalha e o corte final: a idéia da escola era um bolo digerido.

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